Marcos Carnevale tem um olhar honesto sobre os neurodivergentes. Em “Anita” (2009), a história de uma garota com síndrome de Down que se afasta da mãe e passa a depender da bondade de estranhos, o argentino exalta a independência de pessoas com essa limitação cognitiva, e em “Goyo” volta a fazê-lo, mesmo que agora seu personagem-título seja um homem de beleza clássica, sofisticado, culto — e que poderia conseguir um sucesso avassalador em qualquer esfera da vida caso não tivesse de submeter-se aos desmandos da Síndrome de Asperger, um transtorno do espectro autista que afeta de modo decisivo a capacidade de alguém quanto a se socializar e se comunicar.
O texto de Carnevale, pleno de delicadezas quase invisíveis a olho nu, bate na tecla de que Gregório, o guia de museu que sabe de cor todos os detalhes acerca das obras que apresenta, mas não tem a menor ideia de como processar sentimentos como a paixão por uma colega que passa a dar o tom da narrativa já no primeiro ato, também é responsável pelas escolhas boas e más que venha a fazer, a despeito do histórico de superproteção de Saula, a irmã mais velha interpretada por Soledad Villamil e, no polo oposto, de rejeição materna que marcam sua vida desde sempre. O diretor-roteirista remexe esse baú de ossos até encontrar a peça que falta para solucionar uma espécie de enigma que paira como uma nuvem cinzenta sobre a cabeça de Goyo, que merece ser feliz não ter sofrido, mas por desejá-lo (e empenhar-se muito para tal).
Ninguém pode negar que o contexto em que os grandes gênios da humanidade viveram influenciou muito sua produção. Escritores, atores, artistas plásticos, filósofos e cineastas são diretamente afetados pelas condições da dureza da vida como ela é: apuros de dinheiro, uma família que cresce além do desejável, rupturas, mortes repentinas e em circunstâncias trágicas ou o simples descrédito de tudo — esse talvez o pior cenário, porque inescapável. Isso atinge em cheio a obra de alguém que pensa e sente em medida superior aos demais. Ernest Hemingway (1899-1961), em seu autoexílio em Cuba se deixou dominar gostosamente por um laissez-faire, um dolce far niente, uma letargia, uma leseira invencível, passando os dias a tomar sol e conversar com os trabalhadores do mar enquanto pescava. Todas essas experiências morreriam com ele, não fosse uma provocação de seu editor.
Assim, veio à luz “O Velho e O Mar”, a maravilha que o alçaria novamente ao panteão dos melhores literatos do século 20. Vincent Van Gogh (1853-1890) é o Hemingway das artes plásticas, e Goyo, seu alter ego da contemporaneidade. É pelo talento para a pintura que o protagonista, vivido com crueza e intensidade pelo uruguaio Nicolás Furtado, se afirma no mundo, e a certa altura fica parecendo que é o reconhecimento como artista o que lhe falta para entender-se um homem inteiro, muito mais que dois amores, o de Eva Montero, de Nancy Dupláa, uma mulher mais velha, separada e com dois filhos que vai trabalhar no museu, e o de Magdalena, a mãe que volta para mais infernizá-lo que para tentar se redimir. Ainda que nunca aflore, é essa a grande iluminação que Carnevale sugere, e o deslize maior de “Goyo” é justamente não o explicitar com todas as tintas das histórias de gente real, com suas muitas barreiras.
Filme: Goyo
Direção: Marcos Carnevale
Ano: 2024
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10