Em 1988, Nicholas Winton (1909-2015) está sentado na plateia do “That’s Life!”, programa exibido pela BBC One de 1973 a 1994 que tinha entre suas pautas mais frequentes assuntos do consumidor. Todo o auditório é composto por gente que ele salvou da morte ao longo das trevas do nazismo, crianças que são agora damas e cavalheiros em idade provecta, mas esse segredo só se mostra na conclusão de “Uma Vida — A História de Nicholas Winton”, a linda biografia elaborada por James Hawes para narrar os pontos mais duros da jornada de Winton na pele de um corretor da Bolsa de Valores de Londres que se encarrega de resgatar pelos próprios meios os filhos de pais judeus em Praga, capital da então Tchecoslováquia, pouco antes de estourar a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Hawes conta essa história que só mesmo a vida teria sido capaz de escrever a partir do roteiro de Lucinda Coxon, Nick Drake e Barbara Winton (1953-2022), filha do biografado, cujos pais, Barbara Wertheimer (1888-1978) e Rudolph Wertheim (1881-1937), chegam à Inglaterra vindos de Nuremberg, na Baviera, sudeste da Alemanha, e mudam o sobrenome para não levantar suspeitas quanto a seu desejo de integrar-se ao resto do país. Ironicamente, quando todos queriam encontrar um porto seguro como a Inglaterra, Winton se voltou para o drama dos judeus na Europa Oriental, e no caso da Tchecoslováquia, invadida por Hitler depois do descumprimento do Pacto Molotov–Ribbentrop, um acordo de não-beligerância com a União Soviética de Stalin, em 23 de agosto de 1939, nem mesmo os trens Kindertransport, usados na Alemanha e na Áustria para o salvamento de crianças refugiadas, eram permitidos. O horror em seu estado mais brutal.
O semblante plácido de Anthony Hopkins rompe a trama, nos estúdios da BBC One, até que a história envereda para a juventude de Winton. No final dos anos 1930, a carreira de financista começa a decolar, e entre uma e outra sequência explicando a rotina de seu personagem central, Hawes ilumina o lado mais sinuoso de Winton, um judeu convertido que se diz agnóstico e um especulador com inclinações ao socialismo. Johnny Flynn dá toda a base de que Hopkins necessita para corroborar a estatura moral de alguém que se propunha a enfrentar a kafkiana burocracia do Reino Unido e dos países pelos quais as crianças passariam, empenhando do próprio bolso as cinquenta libras (cerca de dez mil dólares hoje) exigidas para que cada um fosse admitido na nova pátria.
Barbara Wertheimer, interpretada com especial denodo por Helena Bonham Carter, ajuda o filho colando as fotos das crianças nos passaportes, o que deixa ainda mais patente o caráter heroico da empreitada. Nem tudo corre como ouro sobre azul, no entanto, e o nono trem, que partiria em 1º de setembro de 1939, dia em que a guerra é declarada, é interceptado pelos nazistas. Episódios dessa natureza servem para que nunca se perca a dimensão humana de Winton, que parece só experimentar a plenitude do dever cumprido ao se deparar com alguns dos seres humanos cujas vidas poupou do Holocausto naquele talk show marqueteiro e piegas.
Aparecendo menos do que poderia, Hopkins faz uma boa dobradinha com Flynn, e volta para o encerramento triunfal, ainda que um tanto apoteótico demais para um benemérito improvável, que só fazia o que lhe mandava a consciência. A longa vida de Nicholas Winton foi um providencial respiro de bênção para 669 crianças judias como ele, que decerto sempre quiseram revê-lo, ainda que diante de câmeras indiscretas.
Filme: Uma Vida — A História de Nicholas Winton
Direção: James Hawes
Ano: 2024
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 9/10