Obra-prima com Ralph Fiennes indicada a 11 prêmios, incluindo o Bafta, na Netflix Larry Horricks / Netflix

Obra-prima com Ralph Fiennes indicada a 11 prêmios, incluindo o Bafta, na Netflix

O verdadeiro protagonista de “A Escavação”, na Netflix, é o passado. Baseado no romance “The Dig”, publicado em 2007 pelo escritor e jornalista John Preston, o filme do australiano Simon Stone desvenda a poesia misteriosa por trás de Edith Pretty, uma mulher que conta com uma intuição poderosa para, literalmente, mover as montanhas que impedem que toque a vida depois da grande perda que precede um trauma aparentemente invencível. Edith, vivida com a dignidade que o papel exige por Carey Mulligan, é uma curiosa sobre assuntos que envolvem a doutrina espírita.

Dona de um vasto terreno onde está construída a casa onde pudera desfrutar de boa parte dos inúmeros confortos materiais que a vida oferece a quem pode pagar por eles, Edith enviuvara há pouco, cria sozinha o filho Robert e enfrenta um momento em que se faz necessário rever sua jornada.

O instinto, arma com que se defendera de inimigos ferozes desde criança, sopra-lhe que existe alguma coisa além de terra, rocha e lágrimas sob o chão que pisa, e, talvez, qualquer coisa de novo ou reconfortante ou mágico saia dali. Ela está convicta de que o subsolo da propriedade que Frank, seu finado marido, reserva-lhe mesmo uma assombrosa descoberta, e é aí que entra um personagem igualmente enigmático.

Basil Brown, um arqueólogo diletante e autodidata, há algum tempo já xeretava os domínios da viúva, que termina autorizando que ele revolva a terra em busca de indícios da presença da civilização viking na Inglaterra, palpite a que Brown chega amparado por elucubrações muito mais sensitivas que cartesianas.

A ideia de tesouros enterrados, escondidos, obscuros, é a metáfora perfeita a fim de se esmiuçar as dores de uma mulher solitária, que já se resignava a simplesmente levantar da cama e ser um apêndice do filho, a única pessoa que lhe sobrara no mundo, mas que de súbito é sacudida por um ímpeto qualquer e reage.

Os trabalhos têm início e Brown, sozinho, acha três sepulcros num pequeno monte de terra. Saber que é o homem que traz à superfície detalhes ocultos de uma civilização sobre a qual não se conhece quase nada é o que move Brown a escavar uma gleba maior e descobrir o que fora um navio-fantasma, usado para armazenar miudezas do rei Raedwald, morto, ao que indicam as pesquisas mais recentes, em 624, ainda durante o Império Bizantino (395-1453), além de conduzir todo o séquito do monarca — embora a natureza não lhes houvesse chamado ainda.

O hábito macabro remete de pronto aos costumes dos antigos faraós egípcios, pelo menos três mil anos antes de Cristo, e não por acaso Raedwald se faz conhecer pela alcunha de “o Tutancâmon britânico”. O déspota, que se dizia parte da descendência de Odin, deus da mitologia nórdica, se convertera ao cristianismo, o primeiro rei inglês a tomar tal decisão — e ainda hoje são raras as ocorrências de conversões públicas de britânicos à fé cristã, casos do ensaísta Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) e do ex-primeiro-ministro Tony Blair —, mas, muito pragmático, seguia intrinsecamente vinculado aos rituais das divindades pagãs.

Dois seres, cada qual a seu modo, à procura de aceitação, Edith e Basil lidam com seus fantasmas à medida que a escavação se adianta. Ainda por se refazer do passamento do marido, a aristocrática Edith descobre-se à morte, se rendendo a uma doença terminal e obrigada a lidar com a culpa. Imagina que pode ter alguma responsabilidade quanto a sua doença, que se aproveita da dor pela separação forçada e definitiva do companheiro.

A psicanálise até o momento apenas arriscava seus primeiros passos, às vésperas de mais uma morte, a de seu principal divulgador, Sigmund Freud (1856-1939), justo no primeiro ano da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que já se avizinhava, mas o filme levanta a hipótese da somatização da perda, ou seja, Edith poderia ter atraído para si a enfermidade que vai matá-la, a fim de se reaproximar de Frank; no entanto, seu esforço é perverso, uma vez que Robert vai acabar, em tenra idade, completamente desamparado.

O empenho de Basil não é valorizado e, pior, sofre mesmo uma negação: por não ter formação acadêmica, tem de abandonar as buscas, em que pese estar visceralmente envolvido nos trabalhos e seja o homem certo no lugar ideal. Um reconhece o sofrimento do outro, um se identifica no outro.

Ninguém vence a morte — malgrado sua vitória não faça o menor sentido —, mas por meio de como se escolhe passar pelo mundo, pode-se perder de cabeça erguida. A vida vai muito além do que se pode ver.


Filme: A Escavação
Direção: Simon Stone
Ano: 2021
Gênero: Drama
Nota: 9/10