Malgrado toda a infelicidade que pode existir em estar no mundo, uma ideia se reveste de verdade absoluta quando se fala em vida ou morte: ao menor sinal de aperto, quase todos nós escolhemos a vida, mesmo sentindo a presença constante da morte a nos espreitar, muitas vezes de maneira covarde, por mais que tentemos nos esconder.
Com a poesia possível para um relato de Stephen King, o diretor John Lee Hancock discorre sobre as obsessões de um dos mestres do terror, puxando a brasa para uma sardinha nem sempre contemplada por King. “O Telefone do Sr. Harrigan” mantém toda a mística da escrita do autor, mas também envereda por um caminho não menos obscuro, resultando em um filme ainda mais perturbador que muitos outros inspirados por sua vasta produção.
Hancock adapta o conto homônimo de King — um dos quatro de “If It Bleeds” (2020), coletânea de histórias curtas que inclui ainda “Rato”; “Se Sangra”, que dá nome à publicação em inglês; e “A Vida de Chuck” — descrevendo a relação de um garoto de oito ou nove anos com o mundo ao seu redor, um lugar que se revela dia a dia mais hostil. Primeiro na pele de Colin O’Brien, Craig perde a mãe para o câncer em 2003, ficando ele e o pai, vivido por Joe Tippett, tanto mais deslocados numa cidadezinha do Maine, na Nova Inglaterra, terra onde também nasceu o escritor.
Os dois frequentam a igreja local mais como um passatempo do que por uma questão de fé propriamente dita: é quando são notados pelo senhor Harrigan do título, o bilionário misantropo interpretado por Donald Sutherland em um de seus últimos papeis em filmes antes da morte em junho de 2024. A estrutura narrativa usada pelo autor ilustra e o texto do diretor-roteirista corrobora que Harrigan, cuja fortuna remonta a anos de bem-sucedidas operações no mercado financeiro, escolhera passar o tempo de vida que lhe resta naquele pedaço de fim de mundo porque ali ninguém mais precisaria dele. É uma verdade, mas nem tão absoluta quanto ele e Craig esperariam.
Harrigan também vai aos cultos pela mesma razão que o menino solitário e seu pai, espantosamente apático mesmo um bom tempo depois da morte da mulher. Porém, ao contrário do restante da assembleia, logo vê em Craig a determinação de vencer que pautou sua própria vida desde cedo. Como os olhos já não correspondem mais à agudeza da intuição, que lhe permite enxergar o que não se mostra, o anfitrião oferece a Craig cinco dólares por hora para que o garoto vá até sua mansão e leia para ele. Logo as terças-feiras se tornam o melhor dia da semana para ambos; é quando Harrigan volta a ter contato com maravilhas da literatura universal — algumas ainda impróprias para a tenra idade do novo funcionário, como “O Amante de Lady Chatterley” (1928), de D. H. Lawrence — e Craig tem a oportunidade de acessar um universo que jamais imaginara existir.
Hancock entra no mote que dá início ao enredo com muita parcimônia. Passam-se alguns anos e Craig ainda conserva o posto de ledor do velho magnata, agora interpretado por Jaeden Martell, ratificando as inquietações do personagem que O’Brien soubera apresentar no primeiro ato. Nesse ponto, Harrigan mantém com o rapaz um laço muito mais estreito, talvez de avô e neto, embora nunca haja nenhuma cena que se possa classificar como emocionante entre os dois. O ricaço tem o costume de presentear seus amigos (raros, como se assiste na boa explicação visual que Hancock oferece mais adiante) com volantes de raspadinha, e, finalmente, Craig é contemplado.
Ele ganha três mil dólares, e boa parte do dinheiro vai para a compra de um celular de última geração, que oferece a Harrigan — ele já havia ganho seu próprio aparelho meses antes, do pai, e causa espécie como esse homem é silenciosamente negligenciado pelo filho. Depois de alguma hesitação, Harrigan, um ludita confesso, aceita o mimo, possivelmente entusiasmado pelo aplicativo que lhe permite acompanhar o sobe e desce das bolsas de valores do mundo todo, um privilégio que os muitos ricos tinham quando de sua juventude, guardadas as devidas proporções. Nesse ponto, King e o diretor elaboram boas tiradas sobre o jornalismo nos tempos de informação à velocidade da luz, que nem sempre ilumina. A virada da história alude a uma mudança na relação de Craig e Harrigan, que deixa de ser tão próxima, mas continua estável, inclusive com uma ajuda nada cômoda do vetusto amigo sempre que o rapaz precisa dele.
Fãs ortodoxos dos livros de King — e, principalmente, dos filmes baseados neles — hão de estranhar “O Telefone do Sr. Harrigan”, que está na Netflix. Muito distante de outras produções do gênero, a exemplo de “1922” (2017), de Zak Hilditch, este talvez seja o trabalho mais idiossincrático de um escritor notório, o que Hancock capta bem. Eis a chave de todo o segredo aqui.
Filme: O Telefone do Sr. Harrigan
Direção: John Lee Hancock
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Terror
Nota: 8/10