Filme hipnotizante sobre solidão e autoconhecimento, na Netflix, que vai acalmar sua alma Divulgação / Fox Searchlight Pictures

Filme hipnotizante sobre solidão e autoconhecimento, na Netflix, que vai acalmar sua alma

Não somos proprietários de nada nem de ninguém, nem mesmo de nossas próprias vidas, apesar de, por mais absurdo que pareça, alguns tratem sua existência como um cronograma rígido, sem espaço para desvios ou explorações. Às vezes, é preciso percorrer grandes distâncias para sentir-se em casa, e somente após uma longa e extenuante jornada, desumana até, é que compreendemos o que estávamos buscando.

Cheryl Strayed tentou reencontrar-se de diversas maneiras, mas foi atravessando o oeste dos Estados Unidos que conseguiu ordenar anos de traumas por perdas insuportáveis, pensamentos autodestrutivos e a natural inconformidade com a vida.

Em “Wild”, Jean-Marc Vallée (1963-2021) retrata a jornada de Strayed pelos cerca de 1.800 quilômetros da Pacific Crest Trail, que atravessa a Califórnia desde a fronteira com o México até os limites com o Canadá. Foram mais de quatro meses enfrentando calor escaldante no início, neve no final, e contratempos que exigiram frieza e um desejo incessante de superação. Nick Hornby, em mais uma de suas brilhantes adaptações, transformou as passagens dolorosas de “Wild — A Jornada de uma Mulher em Busca do Recomeço” (2012), de Strayed, em uma seleção de poesia incômoda e estimulante, uma característica marcante do filme.

Logo no início, Cheryl senta-se à beira de um precipício, tira um pé da bota de cadarços vermelho-cereja e arranca a unha do dedão esquerdo. A dor a faz curvar-se, e ela lança a bota ribanceira abaixo, um batismo de sangue que faz questão de reforçar arremessando o outro pé. Cenas assim prendem imediatamente a atenção do espectador, convencendo-o de que Reese Witherspoon é a escolha perfeita para o papel.

Após uma sequência de trabalhos irregulares após “Johnny & June” (2005), a biografia de Johnny Cash e June Carter dirigida por James Mangold, pela qual ganhou o Oscar de Melhor Atriz, Witherspoon acerta em uma composição agridoce, seca e intensa, inclusive nos flashbacks que mostram os eventos que a levaram à decisão radical sobre seu futuro.

Nesses flashbacks, Laura Dern, no papel de Bobbi, mãe de Cheryl, quase rouba a cena, assim como fez em “História de um Casamento” (2018), de Noah Baumbach, que também lhe rendeu um Oscar. Vallée dedica bons minutos do filme para documentar a relação entre Cheryl e Bobbi, cuja alegria de viver sucumbe a um câncer de medula. Isso não explica tudo o que ocorre com Cheryl, que aos 27 anos, divorciada, parece ter sufocado o gosto pelo sexo casual, a prática que arruinou seu casamento com Paul, interpretado por Thomas Sadoski, além do vício em heroína.

As dificuldades climáticas, a alimentação insossa, a falta de banho e o silêncio constante ajudam Cheryl a tornar-se quem é, ainda que nos registros dos viajantes ela sempre deixe mensagens um tanto esquizofrênicas, misturando sua identidade à de Emily Dickinson, Robert Frost ou John Micherer. Em 15 de setembro de 1995, ao término da jornada, ela volta a ser apenas Cheryl Strayed, redescobrindo-se dona de si mesma.


Filme: Wild
Direção: Jean-Marc Vallée
Ano: 2014
Gêneros: Aventura/Thriller/Biografia 
Nota: 9/10