Melhor filme do Festival de Cinema de Trieste de 2023, drama argentino de Lucía Puenzo, acaba de estrear na Netflix Divulgação / INCAA

Melhor filme do Festival de Cinema de Trieste de 2023, drama argentino de Lucía Puenzo, acaba de estrear na Netflix

Há um sem fim de maneiras de se contar as tantas histórias de inadequação, de inconformidade com o vasto mundo que o cerca, com a austera vida que o devasta, com sua própria natureza, de que se esconde, que renega, da qual não pode fugir. Lucía Puenzo não sabe muito bem aonde quer chegar com “Os Impactados”, uma história sobre os desajustes de uma mulher que se descobre completamente solitária depois que um raio cai sobre sua cabeça, sem figura de linguagem. 

A diretora passa longe de reproduzir a delicadeza e a precisão semântica de que se valeu com igual propósito em “XXY” (2007), quando contou a história de uma garota hermafrodita que se apaixona por um rapaz sem contudo ter vontade de submeter-se a qualquer transformação em sua aparência. Artificioso, o roteiro de Puenzo e Lorena Ventimiglia se espraia durante longa hora e meia pelos monólogos existenciais de Ada, a veterinária interpretada por Mariana Di Girolamo, que tenta compreender o porquê de ter sido ela a escolhida pela natureza, poderosa e cruel, a zelar por um segredo que fazem-na evoluir, mas a torturam.

A despeito da sufocante ânsia por se destacar em meio à tacanhice e à sobrevalorização do excepcional, do inimaginável, do fabuloso, todos queremos ter a vida o mais normal, o mais comum, até o mais previsível quanto se puder, e uma vez que chega-se a esse paraíso, em que as ilusões restam devidamente sepultadas, as neuroses evolam-se como o perfume das rosas no primeiro raio de sol e as mágoas, derradeiro refúgio da tristeza, somem como se cansadas de não mais causar dor, reflora a esperança da felicidade possível, condição pela qual tanto se luta, mas sói escapar-nos por entre os dedos, como se, no fundo, algum detalhe nefasto indicasse que não a merecemos. 

A vida — ou o que sobra dela — erode-se por si só, num movimento que avança sem que nada mais se possa fazer além de cada qual tomar seu luto e suas lutas, lançar-se novamente à aventura do existir por outras sendas e tentar finalmente atingir a glória grande ou pequena que não se para nunca de buscar, malgrado a paralisia avassaladora, mas temporária, do sofrimento. 

Num só movimento, viver torna-se uma sucessão de luzes e sombras que se atraem e se repelem e se equivalem, subidas e descidas bruscas e repentinas como num brinquedo macabro, entradas e saídas de labirintos claustrofóbicos que se estreitam ainda mais conforme tomamos pé de nossas humanas limitações, agudizando a impressão de que no espírito do homem cabem mesmo todos os sonhos do mundo, mas nele encrustam-se igualmente muitas das côdeas que enxovalham o mundo para muito além da vã filosofia deste plano tão rasteiro.

Ada cruza o pasto para socorrer uma vaca prenhe e o infortúnio a encontra. Um bilhão de Volts percorrem seu corpo frágil, ela fica em coma por seis semanas, mas não se reconhece: uma imensa cicatriz vermelha sai da cabeça, agora coroada por uma aura branca com contornos azuis, e chega até o baixo ventre, que parece mais sensível. Puenzo se esforça para tornar crível uma ideia que está essencialmente ancorada na fantasia, e esse é seu grande equívoco — ainda maior que sugerir que a bênção e o flagelo vêm do alto. Importa mais o que preparamos para cada um deles. 


Filme: Os Impactados 
Direção: Lucía Puenzo
Ano: 2023
Gêneros: Drama
Nota: 7/10