Ninguém notou quando eu passei com a tristeza na sacola

Ninguém notou quando eu passei com a tristeza na sacola

Hoje é aniversário de nascimento do meu velho. Faz quase três anos que ele morreu. Parece que foi ontem. E foi mesmo. Há quase três anos. Percebo que estamos mais parecidos a cada dia. Física e psiquicamente. Não tenho certeza de que seja uma semelhança a se comemorar. A magreza. A compulsão pelo trabalho. A ansiedade. O imediatismo para resolver os problemas. A dificuldade para expressar o amor. A indignação com os podres, com as mazelas, com as iniquidades da humanidade. Aquele cenho amargo que não condiz ipsis litteris com a amargura interior, mas, que aturde as pessoas, em certa medida. Creiam: não sou tão aborrecido quanto pareço.  

Nos seus últimos estertores na UTI, contiveram-no no leito usando ataduras de crepom. Agitado demais para ser razoável, com os neurônios em debandada, ele queria se levantar, arrancar a sonda, os tubos, os eletrodos, ir-se embora, enfim, buscar sei lá quem na estação rodoviária. Óbvio que não havia ninguém esperando. Não na rodoviária. No hall do hospital, a família sofria por antecedência, farejando o cheiro da morte feito gado no curral. Psiu, ele disse. Ei, você aí, moço, insistiu. Pediu-me o obséquio de desatar os nós dos punhos e dos tornozelos. Ajudá-lo a escapar daquela tremenda injustiça. Amarraram-me aqui, os desgraçados, desabafou, com os cantos da boca espumando um cuspe grosso e liguento.

Eu disse pai, tenha calma, é para o seu próprio bem. Ele perguntou quem era eu, afinal. Qual a sua graça, amigo? Sou o seu filho número dois, não se lembra? respondi com um mau presságio. Meu filho? Tá de brincadeira. Você não é meu filho. Meu filho é médico, trabalha num postinho de saúde, espere só até eu contar para ele o que estão fazendo comigo aqui nesse lugar. Esse povo vai pagar caro. Me solte, moço, por favor, me solte. Me solte que lhe dou um dinheiro. Juro. Está aqui no meu bolso. Pode conferir. Sou funcionário aposentado do Banco do Brasil. Devo tudo ao banco. Ganho muito bem, graças a Deus.

Com paciência, consegui acalmá-lo. Justo eu, um estranho. Chegaram com a bandeja do almoço. Dieta líquido-pastosa, hipossódica. Quer dizer, aquela comida insossa que servem para os moribundos nos hospitais. Devem contratar os piores cozinheiros do mundo. Um escândalo. O velho continuava atado pelos quatro membros. Estado clínico muito grave. Só que conformado, um pouco mais tranquilo depois dos meus argumentos. A enfermeira chefe, parecidíssima com a Marilyn Monroe, só que mais alta e rechonchuda, permitiu soltar a contenção da mão direita, que era a mão boa. Papai era destro. Eu idem.

Tocando nos botões de comando, ela inclinou o dorso da cama para frente e para cima. De tal sorte que o velho ficou sentado. Segurei a bandeja sobre o seu peito macilento, definhado. Dava para contar as costelas, as cicatrizes e notar o contorno suave regular do marca-passo trabalhando no tecido celular subcutâneo. Subia um vapor quente do prato, contudo, inodor. Padrão comida de hospital, se é que me entendem. De hospital, de igreja e de velório, quanto mais rápido a gente sair, melhor. Estimulei-o a comer a gororoba. Elogiei o aspecto da comida. O caldo de frango parece mesmo muito saboroso, pai, menti pela última vez.

Ele devorou o rango com disposição, deixando-me menos acabrunhado.  Se eu comer tudo direitinho, me soltam, concluiu com uma simplicidade da moléstia. Tinha fome de leão para cair fora. Limpei a sua boca com um guardanapo. Obrigado, amigo, agradeceu. Afinal, eu era um desconhecido. Tipo um bom samaritano que passava ocasionalmente ao largo de seu injustificável cativeiro. Marilyn reapareceu. Percebi que retocara o batom. Tinha o rosto bonito, de traços suaves, como a MM original. Ela recolheu os utensílios e prometeu manter a mão direita livre, desde que prometesse se comportar bem. Ele assentiu com a cabeça. Fazia décadas que eu não lhe pedia a benção. Não sabia por que cargas d’água tinha me imiscuído daquela particular reverência. Eu disse pai, fica tranquilo, se comporte e seja gentil com as enfermeiras. Todas as enfermeiras vão para o céu; já os médicos, só a metade. O velho não sorriu, muito menos, respondeu.

Eu tinha saído da UTI para almoçar com os parentes. Comida temperadinha de restaurante self-service, tipo comidinha caseira, nada parecida com o engasga-gato servido nos hospitais. O telefone vibrou no bolso da calça. Do outro lado da linha, uma mulher que se identificou como assistente social recitou a má-notícia-chavão de que infelizmente papai não resistira, descansou o coitadinho, receba os meus sinceros pêsames, senhor, eu sei como é difícil nessas horas. A princípio, aturdido, ensaiei indignação. Como assim? Saí daí agora há pouco, ele parecia melhor, conversou comigo, coloquei comida na sua boca, soltei a atadura da mão direita, que é a mão boa dele, contestei num derradeiro espetáculo de negação.

Constrangida, a funcionária, que, de acordo com os protocolos habituais sequer estava autorizada a revelar notícias de nascimento ou de morte por via telefônica, justificou que paciente de UTI era assim mesmo, ainda mais, quando se tratava de um idoso; às vezes, quando menos se esperava, o doente aprumava, ensaiava uma melhora, deixava todo mundo esperançoso para, em seguida, bater com as quatro, esticar as canelas. Coisas assim sempre aconteciam no cotidiano da UTI e não tinham uma explicação lógica, ela disse. Não sei se o senhor conhece, mas, tem uma música antiga, da qual eu gosto muito, que afirma que a vida é o grande mistério do planeta. Eu disse que sim, que conhecia e que gostava também daquela canção dos Novos Baianos. Agradeci. Desliguei. E anunciei o que todo mundo já sabia.