Baseado em um dos best-sellers mais vendidos da década, suspense hitchcockiano na Netflix vale cada segundo do seu tempo Divulgação / Netflix

Baseado em um dos best-sellers mais vendidos da década, suspense hitchcockiano na Netflix vale cada segundo do seu tempo

A pandemia foi uma excelente desculpa para que entornássemos garrafas de vinho umas atrás das outras, nos entupíssemos de comida por entrega e, o melhor, colocássemos em dia a leitura e a pilha de filmes antigos a que passamos a vida tentando assistir. Por isso, é tão fácil identificarmo-nos com Anna Fox, a psicóloga traumatizada de Amy Adams em “A Mulher na Janela”. 

Aos poucos, Joe Wright vai desmontando nossas expectativas quanto a ver na tela a proposta de uma comédia romântica qualquer, e, socorrendo-se do supino talento de sua protagonista, se aprofunda no inferno de alguém perdido de si mesmo, sobrevivendo das migalhas de vida que encontra pela fresta que dá para a rotina de desconhecidos. 

O best-seller de A.J. Finn publicado em 2018, virou um suspense hitchcockiano para ninguém botar defeito pelas mãos de Tracy Letts, cujo roteiro tem o condão de pinçar os elementos certos para cada cena, justamente como fazia o Mestre. Depois de uma introdução capciosa, Wright começa a levar o espectador pelos dédalos escuros da mente de Anna, transtornada pela doença mental que se manifesta no pânico em sair de casa e mina seu já comprometido discernimento quanto ao que é real ou apenas mais uma projeção dos delírios que não cessam de fustigá-la, pensa ter flagrado, do outro lado da rua, o desfecho criminoso de uma discussão em família. Mas confiar nela, mais que imprudente, é temerário.

A fotografia de Bruno Delbonnel enfatiza o marrom da fachada de arenito da casa da personagem de Adams, um emblema de Manhattan, em complemento aos outros terrosos do interior do ambiente, de onde Anna surge num pijama bege, muito branca, cabelos ruivos desgrenhados, numa óbvia evocação de uma entidade além-túmulo qualquer. 

De quando em quando, vai à imensa janela oculta sob longas cortinas e espreita a rua, um recorte microscópico do que se passa na cidade, falando consigo mesma, momentos em que o diretor aproveita para dar pequenos indícios acerca do humor daquela mulher assustada, porém doce, que, às vezes, reparte sua solidão com David, o músico excêntrico que aluga seu porão vivido por Wyatt Russell. Mesmo assim, Anna só abre a guarda no momento em que Ethan Russell, o novo vizinho do prédio em frente, bate a sua porta, oferecendo os sabonetes de lavanda que a mãe comprara para ela.

A visita de Ethan reaviva em Anna a lembrança dos tempos mortos que não supera. Finalmente vislumbra-se uma nesga de identidade nessa figura tão sem contornos: ela saíra do casamento com Ed, por quem ainda parece apaixonada, sem a filha e menciona essa mágoa para o psicanalista interpretado por Letts, que a atende em domicílio. Anthony Mackie surge em imagens que sugerem uma das tantas fantasias da ex-esposa, mas é o vizinho, de Fred Hechinger, em quem começa a despejar ímpetos maternais que o garoto, talvez portador de algum transtorno do espectro autista, não digere bem. Um a um, os pais de Ethan vão ao encontro de Anna, cada qual com um propósito diverso. 

Enquanto tem com Jane uma conversa amistosa, até com margens para uma inesperada troca de confidências, o contato com Alistair é duro, um mostrando ao outro as farpas que não demoram a aparecer com mais nitidez. Wright assume o tom farsesco de seu longa quando, numa segunda entrada do pai de Ethan, a loucura de Anna é exposta sem rodeios, e ela aproveita para acusá-lo de um crime. 

Talvez quem tenha razão seja ele, com Gary Oldman sempre no ponto, uma vez que Jane, antes na pele de Julianne Moore, é agora encarnada por Jennifer Jason Leigh. Coincidentemente ou não, na mesma semana, Anna flagra um episódio bastante obscuro na casa dos Russell, esse verídico, sobre o qual não pode afirmar nada sem se comprometer.

Um novo personagem entra na história para explicar (em parte) o mistério que ronda o que se dera com os Russell, mas o que há nas entrelinhas é mais perturbador. 

“A Mulher na Janela” pode ser apreendido sob muitos vieses — um alerta sobre a histeria que acomete mulheres abandonadas, num ângulo um tanto preconceituoso e até cruel, mas não de todo errôneo; o perigo indetectável em que se transforma o mal-estar da vida nas grandes cidades, ameaçando a todos; um desabafo quase poético acerca da importância da empatia com os sofrimentos de quem não se conhece, para nós tão simples de ser combatido, todos relevantes —, mas o que fica realmente é a fraqueza que nos une diante dos inimigos que não vemos. Há um lado bom nas pestes.


Filme: A Mulher na Janela
Direção: Joe Wright
Ano: 2021
Gêneros: Thriller/Mistério
Nota: 9/10