Histórias de criaturas monstruosas que deixam as catacumbas e vêm atazanar os vivos são velhas como o mundo. Há quase um século, Tod Browning (1880-1962) e Karl Freund (1890-1969) deram a partida numa saga que, decerto não imaginavam, perduraria para muito além de seu tempo.
Embora “Nosferatu” (1922), dirigido por F. W. Murnau (1888-1931), tenha sido a primeira grande investida do cinema quanto a desvelar esse lado obscuro e pernicioso do interesse humana, foi em “Drácula” (1931), levado à tela por Tod Browning (1880-1962) e Karl Freund (1890-1969), que o público pôde ter uma noção mais clara do quão cativante é esse nicho, sentimento que se mostra verdadeiro pela constatação de que, transcorrido quase um século, as histórias de vampiro perduram e se ramificam pelos vieses mais distintos.
“Drácula — A Última Viagem do Deméter” passa a limpo as dezesseis páginas de O Diário do Capitão, um dos capítulos de “Drácula” (1897), de Abraham “Bram” Stoker (1847-1912), que firmou de vez no inconsciente popular a imagem do vampiro como a conhecemos hoje. O norueguês André Øvredal abre novos caminhos para o romance gótico de Stoker ao deslindar a jornada da corveta Deméter, a embarcação de bandeira russa que homenageia a deusa da agricultura, detentora dos ciclos da vida e da morte. O Deméter sai da Transilvânia, região no centro-oeste da Europa Oriental onde hoje fica a Romênia, para Londres, com cinquenta caixotes de madeira, e no percurso, uma entidade demoníaca que se apossa do espírito e da carne dos tripulantes.
Muito antes de se deixar levar pelo reducionismo estúpido do consenso, há que se saber exatamente por que certas figuras da história reúnem a sua volta tamanha carga de polêmica, sem se dizer com isso que não tenham sido julgadas pelo tempo com o rigor merecido.
Decerto o que mais fascina em tudo quanto se refere aos vampiros é a comparação do que se sabe acerca da atuação mitológica dessas criaturas com sua dimensão humana, caso de Drácula, lembrado pela bravura em cenários de guerra e como um chefe de família devotado, que não se furtava a defender os seus com sangue se necessário. O roteiro de Bragi F. Schut e Zak Olkewiczaposta nas contradições de um homem envolto na bruma corrosiva do que jamais se revela.
Aquele 6 de agosto de 1897 teria tudo para ser mais um dia de trabalho exaustivo na vida daqueles homens embrutecidos pelo vento cortante do oceano e amaciados pelo rum, não fosse a presença do próprio diabo em pele de mulher — o que não deixa de evocar uma certa misoginia, comum a essas tramas centenárias. A maneira como Øvredal trabalha a oposição do bem e do mal, materializados respectivamente por Clemens, o médico de Corey Hawkins, e Anna, a intrusa que ameaça a todos vivida por Aisling Franciosi, sobretudo no desfecho, é o que chama a atenção para aspectos menos óbvios do filme, dispostos em duas horas de cenas entre banais e sofisticadas.
Filme: Drácula — A Última Viagem do Deméter
Direção: André Øvredal
Ano: 2023
Gêneros: Terror/Fantasia
Nota: 8/10