Últimos dias para assistir ao romance que vai te fazer se apaixonar pela Itália, na Netflix Divulgação / Touchstone Pictures

Últimos dias para assistir ao romance que vai te fazer se apaixonar pela Itália, na Netflix

Muitas vezes, grandes problemas podem ser resolvidos com pequenas viagens, ainda que ninguém garanta que novas questões, e ainda mais absorventes que as anteriores, não surjam pelo caminho, exigindo soluções definitivas que talvez nem façam mais tanto sentido. Nada é tão inspirador para alguém que experimenta uma desilusão amorosa sem remédio quanto pensar nas mil esperanças que lugares como o centro da Itália guardam, e “Sob o Sol da Toscana” trata de chegar a esse ponto com toda a serenidade, por mais cheio de perigos que o itinerário se revele.

O filme de Audrey Wells (1960-2018) concentra um gosto bom de melancolia quase doce, espalhado ao longo de 113 minutos na pele de uma heroína que não tem medo de sofrer e até parece ir atrás de encrencas quando nota que a vida começa a ficar meio previsível. Roteiros como o de Wells e Frances Mayes já vislumbravam, com alguma antecedência, a urgência da mulher em reafirmar seu compromisso de passar por cima dos velhos rótulos que assumira até há três décadas e seguir indo à luta, malgrado nem sempre tivesse certeza de que o esforço valeria a pena.

Frances, uma escritora num momento delicado da carreira, acaba de encerrar mais uma oficina em que, acredita, ajuda novos autores a encontrar estilo próprio. Ela recepciona os convidados e se despede de alunos meio saidinhos, até ser abordada por um sujeito meio colérico, que diz ter publicado um livro não faz muito tempo, sobre o qual a anfitriã escrevera uma crítica nada elogiosa. A ação poderia descambar para uma sessão de agressões e xingamentos de parte a parte, mas Wells leva a narrativa para o terreno da falsa moderação burguesa quando, depois que o homem refresca-lhe a memória e conta sobre o que falava o livro, arremata com a revelação do adultério de que Frances nunca suspeitara.

Naturalmente, o espectador acompanha a protagonista em seu choque sincero graças à habilidade de Diane Lane em deixar apenas boiando na superfície a farta matéria-prima de que o enredo vai se socorrer dali a pouco, quando, findo de um divórcio turbulento e escorchante, decide, ao cabo de dias de hesitação, aceitar a oferta de Patti, a melhor amiga interpretada por Sandra Oh, que resolveu ter um filho com a companheira e prefere não mais deslocar-se de avião até que o bebê nasça.

A diretora usa o intervalo, do instante em que Patti e a namorada lhe dão a passagem até a hora em que pega o telefone e toma a atitude que vai mudar sua vida, como um respiro cômico muito eficaz, preenchido pelas cenas em que mostra a realidade acerba da protagonista, vivendo numa cabeça de porco no centro de San Francisco enquanto se esforça para conservar uma nesga de lucidez e dignidade.

Uma vez na Toscana, onde chega numa excursão para homossexuais, tudo acontece muito rápido. Aqui, o escapismo hollywoodiano aflora em suas nuanças mais rosicleres, desde a vesana negociação pela casa que acaba comprando mesmo, da condessa empobrecida e supersticiosa de Laura Pestellini (1919-2010), à amizade com os novos vizinhos, uma gente excêntrica e calorosa. Frances chegara à propriedade mediante a indicação de Katherine, uma escocesa radicada em Florença que não abre mão de perambular por Montepulciano e Montalcino, com o nobre propósito de ostentar seus chapéus de cores gritantes e plumas e dividir com os nativos suas lorotas engraçadas e megalômanas.

Lindsay Duncan responde pelos lances mais saborosos do filme, evocando lembranças de Federico Fellini (1920-1993) que ninguém nunca saberá se têm algum fundo de verdade ou se não passam de um de seus incontornáveis delírios. Na iminência do desfecho, em que encarna Sylvia, a vamp de Fellini em “La Dolce Vita” (1960), eternizada pela sueca Anita Ekberg (1931-2015), com direito a fonte e tudo. Como este é um filme de amor, Frances também vive romances de naturezas diversas, da relação, platônica e linda, com Martini, o corretor de imóveis de Vincent Riotta, bem-casado e chefe de uma família tal como ela quer, ao tórrido caso com Marcello, o dongiovanni personificado por Raoul Bova, que chama-lhe Francesca. Até que, finalmente, cruza com Ed, de David Sutcliffe, também estrangeiro e também uma vítima de sua pena escrupulosa.

A tola premência de escapar do rótulo de comédia romântica faz com que Wells tome algumas decisões equivocadas, como abordar um tema tão rico e tão pleno de consequências a exemplo da imigração ilegal nos takes desconexos ancorados por Pawel, o pedreiro de Pawel Szajda, que não fortuitamente apaixona-se por Chiara, de Giulia Louise Steigerwalt, e termina por levá-la ao altar — sob os auspícios de Frances, com uma compilação dos poemas de Czeslaw Milosz (1911-2004) a tiracolo. “Sob o Sol da Toscana” bem que poderia ficar sem essa releitura torta de “Romeu e Julieta” e se concentrar em Fellini. Um dos traços indeléveis do Maestro era o foco, meio ampliado demais neste poético arrazoado de sua obra.

Em última análise, “Sob o Sol da Toscana” se destaca por sua habilidade em entrelaçar as complexidades da busca pessoal por renovação e a descoberta de novos horizontes. A história de Frances não é apenas sobre uma mudança de cenário, mas sobre a transformação interna que ocorre quando nos permitimos explorar o desconhecido. Wells captura com delicadeza a evolução de sua protagonista, que aprende a encontrar beleza e significado nas pequenas coisas, mesmo diante das adversidades.

A paisagem deslumbrante da Toscana serve como um pano de fundo perfeito para essa jornada de autodescoberta. As vinhas ondulantes, as aldeias pitorescas e a rica cultura local são mais do que meros cenários; elas são personagens vivas que influenciam e moldam a experiência de Frances. Esse ambiente idílico contrasta com as turbulências internas da protagonista, criando um equilíbrio visual e emocional que enriquece a narrativa.

O filme também se beneficia de um elenco de apoio talentoso que adiciona profundidade e autenticidade à história. Personagens como Katherine e Martini não apenas fornecem alívio cômico e apoio emocional, mas também representam diferentes aspectos da vida italiana que Frances aprende a valorizar. Suas interações ajudam a construir um sentido de comunidade e pertencimento que é crucial para a transformação da protagonista.

“Sob o Sol da Toscana”, na Netflix, é uma obra que, apesar de suas falhas, oferece uma reflexão sincera sobre a capacidade humana de se reinventar e encontrar felicidade nas circunstâncias mais inesperadas. Audrey Wells nos convida a acompanhar Frances em sua jornada, lembrando-nos de que, às vezes, os maiores tesouros da vida são descobertos quando nos permitimos sair de nossa zona de conforto e abraçar o desconhecido com coragem e curiosidade.


Filme: Sob o Sol da Toscana
Direção: Audrey Wells
Ano: 2003
Gêneros: Romance/Comédia
Nota: 8/10