Meninas e meninos, eu li e ri com “Espeto Corrido”, do escritor italiano por acaso nascido no Brasil, Marcelo Mirisola, e senti que ainda existem ilhas de coragem na bem comportada e cheia de responsabilidade social literatura brasileira contemporânea. Em seu novo livro, Mirisola não faz concessões. Bate duro, mas sem perder a ternura jamais. Da mesma forma que o escrotíssimo sargento Hartman, do clássico filme de guerra “Nascido para Matar”, de Stanley Kubrick, Mirisola não tem preconceitos: despreza todos igualmente. Despreza, sobretudo, nosso “zeitgeist”, o espírito de porco de nosso tempo. Tempo que gerou o carro elétrico, o Prozac e o Tinder. O Tinder, inclusive, é o tema do livro.
Para Marcelo Mirisola, “antes do Tinder era o vácuo. (…) Foi somente a partir do Tinder que a putaria entrou em sincronia com os putanheiros (as) e, digamos, fez aquilo que alguns místicos chamam de ‘sentido’”. E que ninguém se engane ou tente procurar entrelinhas ou significados dúbios no título. O tal espeto corrido é exatamente aquilo que parece: as pessoas que se apresentam para relacionar-se com outras pessoas no referido aplicativo de encontros. No caso específico do interesse imediato do autor, mulheres. Começa com a grávida imaculada Sol, vai para a pobre Mychelle Crysttyanny, mãe do endiabrado Arturzinho; continua com a bela e suja Raissa dos calcanhares rachados, dá um close na quase cineasta Lelê de mil reais, fora o desconto, e segue lista de usuárias do Tinder afora.
Mirisola, vagando entre o Rio de Janeiro e São Paulo, faz fila, mas não é um canibal sem culpa. Tenta experimentar todas as opções disponíveis na churrascaria de carne humana do Tinder, quase nunca com sucesso, totalmente consciente do aspecto degradante de suas intenções. Mas se são dois adultos conscientes e em comum acordo, que mal há? Talvez um freudiano mal-estar da civilização, diria a voz narrativa se não estivesse ocupada tentando um “match”.
Marcelo Mirisola, diferentemente da maioria dos escritores brasileiros da atualidade, não é condescendente com ele mesmo, com as mulheres que encontra ou com a humanidade em geral. Sabe e diz abertamente que, no fundo, apesar das dores e injustiças do mundo, quase ninguém presta. Definiu sua geração como um bando de covardes hipócritas que “trocaram Bukowski por Carolina Maria de Jesus” como forma de minimizar a culpa por ser classe média, essa gente que vai para Campos do Jordão para fingir que está nos Alpes Suíços, “usar cachecol e soprar fumacinha nas mãos em concha”.
Não por acaso, a maioria da carne exposta no espeto corrido do Tinder que encontra pertence à classe operária. A consciência social autoimposta da classe média não é suficiente para suplantar sua libido, que fomenta essa nova forma de exploração do proletariado. Sacos de cimento, banhos quentes ou um pouquinho de afeto, tudo é moeda de troca. Até moeda corrente.
Considero uma injustiça Mirisola não ser comumente considerado como um dos precursores da autoficção à brasileira. A verdade é que ele é. Só não sei se ele quer ser conhecido por isso. Sua literatura é mais de acusação do que de confissão. Nunca fica claro se as narrativas de “Espeto Corrido” são inspiradas em fatos ou pura ficção. Na verdade, não importa muito. O importante é que depois de anunciar que “A Fé que Perdi nos Cães”, de 2021, seria seu último livro, o autor está de volta em plena forma, distribuindo voadoras nos leitores e bicudas em crianças autistas. Sim, você leu certo. O nível é esse. Como diria Dante, outro italiano, “deixe de fora toda esperança aquele que aqui entrar”. O profeta do caos MM ensinou que “A Vida não tem Cura”. Seu novo livro pode te divertir, mas não pense que vai deixá-lo na zona de conforto. Mirisola é o Wolverine da literatura brasileira contemporânea, ele é o melhor naquilo que faz, mas o que faz não é nada agradável. Ou é, se você tiver coragem para enfrentar suas sombras e não se levar tão a sério.
“Espeto Corrido” é um romance que pode ser lido como uma coletânea de contos. A ordem não importa muito. Algumas narrativas são hilariantes. Não descarto que diversos leitores, anestesiados pelo politicamente correto reinante, rirão de nervosos. Os entusiastas do bom e velho estilo “panzer” do Mirisola de “O Azul do Filho Morto” e “Animais em Extinção” soltarão um aliviado “bem-vindo de volta, Marceleza”. Esses vão torcer para Mirisola dar “match” com Fátima, Paulinha Denise, Ariela e Joana, aquela do contragosto, para um segundo round com suas antigas musas. Infelizmente, o perfil no Tinder do narrador acabou sendo banido pela plataforma. Não se preocupe, esse “spoiler” é irrelevante. O importante é descobrir como Marcelo Mirisola conseguiu ser expulso de uma suruba por mau comportamento.
Nota importante: A editora Velhos Bárbaros foi criada pelo próprio Marcelo Mirisola, como forma de driblar o patrulhamento e os leitores sensíveis do mercado editorial. Por isso, no momento, “Espeto Corrido” só está sendo vendido em dois lugares: no Sebo do Bac (@sebodobac) e no bar e editora Ria, antiga Mercearia São Paulo. Ou seja, é um produto superexclusivo. Garanta o seu exemplar.