É um óbvio exagero dizer que Enzo Anselmo Giuseppe Maria Ferrari (1898-1988) tenha sido um visionário, mas ninguém pode negar que seu nome tornou-se sinônimo de requinte, luxo, beleza e, o principal, velocidade. “Ferrari” entra com cuidado pelos meandros dessa personalidade cheia de contradições, separando muito bem o empresário do homem, dois lados quase antagônicos de uma alma irrequieta, unidos pelo piloto.
Mais uma vez, Michael Mann tira os véus de um personagem algo envergonhado de seus defeitos, embora também nunca se furte a reconhecer em si mesmo todas as qualidades que fizeram-no passar à História como um predestinado, um ponto fora da curva, com a licença do trocadilho. Mann saca do roteiro de Troy Kennedy Martin (1932-2009), inspirado em “Ferrari: O Homem por trás das Máquinas”, publicado pelo jornalista Brock Yates (1933-2016) em 1991, para entender a justa medida em que Ferrari revolucionou o mercado automotivo a partir de um devaneio de juventude, guiando-se por uma intuição rara e demovendo os muitos obstáculos que se lhe foram surgindo. A começar por seu próprio clã.
É impossível não lembrar de “Casa Gucci” (2021), e comparar Ferrari a Maurizio Gucci (1948-1995), outro italiano atormentado por traumas, com um extraordinário tino comercial e ladeado por uma mulher vil, magoada, disposta a cometer uma loucura para não perder o império que ajudara a construir.
Como no filme de Ridley Scott, muito da graça do filme deve-se a Adam Driver e seu equilíbrio entre o temperamento mercurial de que Ferrari lançava mão na hora mais adequada e a habitual frieza com que tocava seus negócios e seu casamento, numa derrocada sem volta desde a morte do filho, Alfredo Ferrari (1932-1956), o Dino, de uma distrofia muscular severa aos 24 anos.
Mann liga o desgosto maior de Ferrari a iminente ruína financeira usando a figura sombria de Laura Dominica Garello Ferrari (1900-1978), a companheira de três décadas, cada vez mais perturbada, incapaz de aceitar a morte de Dino, que atribui à incúria do marido, sempre ocupado com a Ferrari, a montadora que sessenta anos atrás estava ainda bem longe do prestígio que veio a conquistar.
Numa das melhores cenas do longa, tão poética quanto rápida, Enzo visita o mausoléu em que Dino está enterrado, deposita um ramo de flores amarelas e pede-lhe conselhos; pouco depois, o diretor retrocede a 1947, quando o protótipo da Ferrari é concluído e o homem que a tirara do papel era mais máquina que carne. O caso de Enzo Ferrari com Lina Lardi é uma evidência pateticamente clara da maneira como ele e a esposa reagiram à ausência de Dino: enquanto ela definhava, talvez no desejo inconsciente de emular o calvário do rapaz, ele engatara um romance sólido, que dar-lhe-ia outro herdeiro, Piero Lardi Ferrari, reconhecido só depois de adulto. Embora nunca contracenem, Penelope Cruz e Shailene Woodley duelam pela atenção desse homem rude e encantador com as armas de que dispõem, aquela com o corpo, esta com o cérebro.
Na virada do segundo para o terceiro ato, momento em que os cortes secos e as frases que não chegam ao ponto final começam a incomodar, “Ferrari” corresponde aos anseios de quem procura no enredo as referências à Mille Miglia, as mil milhas disputadas ao longo do caminho entre Brescia e Roma numa rodovia em péssimas condições, não raro invadida por cães de rua e ovelhas. O grande saldo do torneio é morte trágica e precoce do espanhol Alfonso de Portago (1928-1957), interpretado com esmero pelo brasileiro Gabriel Leone. Prova cabal de que, aqui, o espetáculo sobrepuja o ser humano.
Filme: Ferrari
Direção: Michael Mann
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Ação
Nota: 9/10