Uma das histórias de amor mais poderosas do século 20, na literatura e no cinema, está na Netflix John Curren / Warner Bros

Uma das histórias de amor mais poderosas do século 20, na literatura e no cinema, está na Netflix

Houve uma época em que o romance era o gênero mais popular de Hollywood. Atualmente, embora as comédias românticas sejam abundantes, os dramas românticos de grande relevância, que sustentam uma narrativa através da força do amor superando obstáculos, são raros. Estes dramas muitas vezes são ambientados em épocas passadas, uma vez que, em um mundo onde o sexo é amplamente disponível, o impacto do amor diminuiu consideravelmente. Compreender o amor como o maior professor que alguém pode ter é o que faz de “O Despertar de Uma Paixão”, baseado no livro de William Somerset Maugham, publicado em 1925, uma obra relevante e intelectualmente estimulante.

A visão de John Curran sobre o romance de Somerset Maugham é precisa, preservando o núcleo da história. Os pais de Kitty, interpretada por Naomi Watts, estão mais preocupados com seu status de solteirona do que ela mesma. Como filha mais velha de um cientista e de uma mulher que abandonou seus sonhos para servir ao marido, Kitty enfrenta a pressão para seguir o mesmo destino das outras jovens da década de 1920. Sua mãe, que antes fazia comentários negativos apenas em família, começa a espalhá-los para outros. Assim, o cerco se fecha rapidamente.

Walter Fane, vivido por Edward Norton, sempre esteve ao redor de Kitty, como uma bactéria esperando para infectar. O biólogo, pragmático mas apaixonado, sonha com a possibilidade de um relacionamento com Kitty, apesar dela nunca ter demonstrado interesse. Norton dá ao seu personagem a austeridade necessária, deixando espaço para um eventual amolecimento espiritual, algo que ocorre de maneira orgânica, graças ao poder transformador do amor. Ambos são vítimas das convenções sociais: precisam se casar, mesmo que não tenham nada em comum. O pedido de casamento de Fane é feito de forma apressada e pouco romântica, pois ele tem apenas dois dias antes de retornar à China para continuar suas pesquisas sobre doenças como o cólera. Sentindo a pressão da mãe, Kitty aceita o pedido, levando-os ao altar de maneira nada sentimental.

Curran, também diretor do sucesso “Tentação” (2004), com Naomi Watts, confere grandeza ao trabalho de Somerset Maugham ao seguir fielmente a narrativa do autor. “O Despertar de Uma Paixão” é filosoficamente denso, questionando a necessidade do casamento em uma época em que a felicidade plena fora do matrimônio era impensável. O roteiro de Ron Nyswaner sugere que duas almas infelizes não encontrarão alegria no casamento. O casamento de Kitty e Fane, sem nada em comum, torna-se uma loteria arriscada. Em uma China enigmática, a trilha sonora de Alexandre Desplat ressalta as solidões dos protagonistas com notas secas de piano. Suas lembranças e fantasmas se misturam a novos desafios, em um ambiente hostil e miserável onde uma doença contagiosa não poupa ninguém.

A situação piora quando Kitty, entediada e à beira de uma crise, conhece Charlie Townsend, um diplomata sedutor interpretado por Liev Schreiber. Kitty se envolve com Townsend, um relacionamento que traz consequências duradouras. A dificuldade de Kitty em aceitar sua realidade parece quase farsesca; mesmo casada, ela age como a filha mimada que era. Watts interpreta Kitty como uma mulher leviana e manipuladora, enquanto Fane, irresponsável, e Townsend, mulherengo, completam o trio problemático. Kitty, no entanto, é a que mais exibe uma pulsão de morte incontrolável. Sua interpretação é ainda mais impetuosa e insondável do que a de Greta Garbo na versão de 1934, dirigida por Richard Boleslawski, e supera a abordagem pálida de “O Sétimo Pecado” (1957), de Ronald Neame.

A amargura de Kitty, Fane e, em menor grau, de Townsend, permeia suas vidas. Apenas Kitty recebe uma chance de mudança, que ela abraça ao rejeitar Townsend, após a partida definitiva de Fane. O único detalhe que faria de “O Despertar de Uma Paixão” um filme definitivo sobre romances fracassados seria Kitty abandonar seu véu colorido em favor de um branco, simbolizando um casamento mais feliz do que o da freira interpretada por Diana Rigg.

“O Despertar de Uma Paixão”, na Netflix, é uma análise poderosa do amor, do casamento e das convenções sociais. John Curran e o elenco, liderado por Naomi Watts e Edward Norton, trazem à vida a complexidade das emoções humanas e a luta por redenção em meio a circunstâncias adversas, tornando o filme uma obra essencial sobre a busca do autoconhecimento e da verdadeira felicidade.


Filme: O Despertar de Uma Paixão
Direção: John Curran
Ano: 2007
Gênero: Romance/Drama
Nota: 10/10