Negar as especificidades de uma literatura feita por mulheres não é igualar nada, não é equacionar, é fingir que a subjetividade feminina não esteve — e não está — inserida em uma multiplicidade de injustiças e violências históricas, culturais e estruturais. Fingir a inexistência de algo não é uma forma de enfrentá-lo. A literatura feita por mulheres, claro, carrega em sua linguagem a determinação de ser não uma literatura feminista, mas uma literatura do feminino, da condição de ser mulher para além das questões ideológicas que possam permear este terreno delicado de se discutir, diante das paixões — legítimas — que suscita. Mas talvez, tratarmos de uma literatura do feminino, mais do que de uma literatura feminista, seja uma forma de valorizar ainda mais a necessidade de se olhar para a trajetória das mulheres ao longo da história, de forma a entender suas nuances, seus contornos e traços únicos de sua jornada.
Pensemos, então, em uma literatura feita por mulheres, a respeito do feminino, e não em uma literatura feminista, sem apregoar, com esta escolha, qualquer juízo de valor em relação a este importante movimento emancipador. Trata-se apenas de pensarmos a arte em sua autonomia, em sua liberdade de ser e de existir, e igualmente de se perpetuar no tempo. George Eliot, uma escritora que assinava com nome de homem, escritora mulher, em uma literatura do feminino.
A literatura feita por mulheres sempre foi um terreno delicado de ser abordado, estudado e discutido, mesmo tendo nomes de peso que povoam essa constelação, como Virgínia Woolf, Cecília Meireles, Katherine Mansfield, George Sand, Marguerite Duras, Lygia Fagundes Teles, Gertrude Stein, Clarice Lispector e muitas outras. Mas, talvez, a verdade seja que, quando uma escritora escreve de modo objetivo, sem o sentimentalismo pertinente aos autores românticos, ou quando é capaz de criar tipos e personagens fortes, contundentes, profundos e ricos psicologicamente, alguns ainda dizem: “ela escreve como um homem”. Não entrarei nesse mérito espinhoso e perigoso, mas posso afirmar: os que dizem isso (não é meu caso) com certeza o diriam de George Eliot, depois de lerem seu absoluto e capital romance “Middlemarch”.
Apesar do nome masculino com o qual assinava suas obras, a importante escritora inglesa (cujo nome verdadeiro era Mary Ann Evans, que tem em sua biografia uma fuga com um homem casado, o igualmente escritor George Henry Lewes), uma das maiores de todos os tempos, traz em sua literatura uma obra na qual podemos ver diversas marcas de defesa e de compreensão profunda e analítica do comportamento feminino, sempre colocando as personagens mulheres em posição de destaque, não somente isso, colocando-as como as figuras a partir das quais os destinos se fundam e se estabelecem dentro da narrativa, povoada de homens torpes, fracos, exageradamente moralistas, derrotados pelos casamentos, apegados a conceitos de uma vida monótona, conservadora, como apregoa o subtítulo de seu romance: “Middlemarch: Um Estudo da Vida Provinciana”.
As personagens masculinas de “Middlemarch” são sempre vítimas de seus destinos, exceto Fred Vincy, que se deixa conduzir pela sublime e consciente Mary Garth, e ter sua vida desenhada pelos rumos que ela e seu pai resolvem dar a ela. Isso fica muito evidente nas quase mil páginas que constituem este livro, e mesmo sendo um romance do século 19, rompe as barreiras de sua época, chega até nós inteiro, universal, sólido, arrebatadoramente humano. Explico por quê.
“Middlemarch” é composto de muitas tramas que se entrelaçam: temos a dificuldade de um jovem médico conquistar clientela em uma cidade em que a vida provinciana cria laços mais que profissionais, mas familiares; vemos também um moço vazio, que faz da sua vida a espera por uma herança que lhe foi prometida, e se perde em dívidas sem poder quitá-las já que, para a sua decepção, ele não é o beneficiário do testamento; há um pastor religioso, viciado em jogo; o casamento falido e decepcionante de Dorothea e sua viuvez marcada por um testamento que lhe tiraria a fortuna do marido caso ela se casasse com o homem que ama verdadeiramente, sendo este parente do falecido cônjuge e aquele que detecta a farsa intelectual que é o marido de Dorothea, com o qual ela se casara movida justamente pela vaidade intelectual de ter um homem culto ao seu lado; há na constelação deste romance o casamento de Rosamond e o consequente endividamento de Lydgate, devido a despesas da união matrimonial que lhe exigiu a manutenção de um nível de vida que sua renda não conseguia suportar.
Enfim, as tramas são diversas, e essas são apenas as que ocupam a maior parte das páginas do romance. Resta dizer, ainda, que o painel de personagens que monta este imenso afresco também é monumental, com cores vivas e singulares. A autora escrevia dois romances no início da concepção da obra, depois resolveu juntá-los em um só. A junção é nítida quando o personagem Lydgate, jovem e promissor médico, aparece no nono capítulo, sendo salvaguardado por Bulstrode, banqueiro e homem mais rico da cidade, cuja fortuna tem origem, como se verá na parte final do romance, escusa.
A trama se fixa principalmente na personagem Dorothea, uma jovem de beleza singular, que tem como plano ideal para a sua vida a aquisição de uma erudição que a remova do mais do mesmo da existência sem relevo das outras mulheres de seu povoado, cujos planos sempre terminavam no quimérico de um casamento sólido e feliz que lhes proporcionasse fartura e prosperidade junto a um homem jovem, belo e promissor, com raízes nobres e sobrenome sem manchas. Em contraponto, temos a também soberba Rosamond. Esta almeja o que qualquer moça de sua idade na Inglaterra da primeira metade do século 19 podia querer, o conforto material e social que lhe garantisse bom nome e reputação ilibada.
Dorothea casa-se com Mr. Casaubon, um homem com muito mais idade do que ela, algo que gera comentários na vida provinciana que o romance mais do que apresentar, analisa, estuda, esmiúça. O interesse de Dorothea por ele se dá pela erudição e espírito cultivado que este demonstra diante dela. Ele lhe representa a salvação de uma vida medíocre. Diz-nos a voz narrativa: “Agora ela seria capaz de devotar-se às obrigações de vulto (..), ser-lhe-ia permitido agora viver continuamente à luz de uma inteligência que ela podia reverenciar (…) Toda a paixão de Dorothea transfundia-se através de um espírito que lutava por uma vida ideal…”
Na outra ponta da teia do romance, Rosamond, bela, porém vazia, casa-se com o digno, honesto e idealista médico Lydgate, na espera de viver um conto de fadas que é destituído lentamente na rotina de dificuldades de um casamento sem glamour. Mergulhado em dívidas e em situações ambíguas perante a sociedade, Lydgate vê seu casamento afundar e sua reputação perder-se lentamente na calúnia, até ser salvo por Dorothea que, depois de passar novecentas páginas sem encontrar-se com Rosamond, tendo cada figura sua existência independente dentro da trama, procura-a para falar das injustiças pelas quais está fazendo seu marido passar. O diálogo dessas duas mulheres tão distintas é um ponto em que a perícia genial da escritora George Eliot afigura-nos como uma aula de narrativa perfeita, sem furos, arquitetada de modo impecável, e se o moralismo grita dentro desta parte do texto, ele não é forte o suficiente para enfraquecê-lo, como disse Henry James, George Eliot trabalha em “um certo terreno médio onde a moral e a estética se movem em harmonia”.
O encontro das duas personagens é, na verdade, quando todo o projeto de seu romance — falar da diferença entre o novo e o velho, o superficial e o profundo, a solidariedade e o egoísmo que costuram a teia de relações humanas na vida provinciana de Middlemarch, e a posição das mulheres dotadas de certa autonomia, representada Dorothea — para alguns seu alter ego — fecha-se e nos leva às últimas páginas concluintes, quando o futuro das figuras que povoam o livro é apresentado, mostrando assim a fatalidade da vida, sempre guiando a passagem dos dias, dos anos, dos sentimentos e, mais que tudo, das pessoas que, infalivelmente, morrem: algumas felizes, outras infelizes, mas sempre finitas.
O diálogo dessas duas mulheres contrastantes dá-se em momentos definitivos de suas vidas, nos quais grandes escolhas estão por serem feitas. A emoção do diálogo, as falas pungentes, os — como mais uma vez disse Henry James a respeito deste livro — “duelos verbais” entre elas são fascinantes, e são assim pela humanidade, pela verdade, pelo despir de qualquer vaidade num momento em que a única coisa que as une é o fato de serem mulheres, incompreendidas e ali, solitárias, apesar de significarem lucidez (Dorothea) ou ruína (Rosamond) em um mundo que as vê como meros enfeites sem ideias e pensamentos. Cabe a elas nada mais do que serem solidárias uma com a outra.
O drama maior é a revelação a Rosamond, ao ver a grandeza que exala de Dorothea, sobre a pequenez de sua vida, de seus gostos e ambições. A generosidade que repousava em Dorothea não serve somente para fazê-la perceber o mundo de equívocos no qual vivia com seu marido, ante o qual era egoísta e perversa, mas também para mostrar o largo caminho que ela poderia percorrer na direção de tentar ser, por que não, mais parecida com Dorothea, que sabia contemplar o mundo e a vida em sua esfera de dor e em seus contornos de felicidade, reerguendo-se de um casamento angustiante e claustrofóbico com o pseudointelectual mr. Casaubon.
Depois de uma cena de imenso despojamento sentimental das duas, na qual tudo é falado, seria comum esperarmos na despedida um derramamento emocional em forma de gratidão: o abraço cúmplice ou a saudação lisonjeira entre um exemplo a ser seguido e uma grata discípula. Mas George Eliot, que, repito — para muitos talvez escreva como um homem —, frustra o leitor romântico do século 19. Vejamos a objetividade, a falta de misericórdia e a economia verbal de George Eliot: “Estendeu a mão a Rosamond, e as duas trocaram um adeus tranquilo e grave, sem beijos ou quaisquer demonstrações efusivas: a emoção por elas partilhada fora séria demais para permitir agora um uso superficial de seus sinais”.
Paulo Francis afirmou, em março de 1994, que “Middlemarch, de George Eliot, é a mais sutil e completa análise social da Inglaterra no século 19”. Para além de ser uma análise social perspicaz, é, também e igualmente, um espelho de Stendhal, no qual vemos os dissabores e fraquezas da alma e do comportamento humanos, feito que certamente coloca George Eliot no mesmo patamar dos grandes romancistas ingleses do século 19, sendo talvez ela a melhor deles.
Virginia Woolf dizia que Middlemarch fazia com que a maior parte dos outros romances ingleses de seu tempo parecesse destinar-se a um público juvenil. Assim é porque esse livro da era vitoriana tem o poder de nos fazer envelhecer. Sua linguagem precisa e correta aliada a tipos inesquecíveis, tão dotados de vida e de psicologia, como se vê em poucos romances, leva-nos às vezes à lembrança das páginas de “Guerra e Paz”, através das quais chegamos a sentir o cheiro da época a que Tolstói nos leva. E se esse russo tão bem nos deu sua Natasha infindável na mente de seus leitores, podemos carregar, com George Eliot, Dorothea em nossa reflexão, perpetuamente.