O filme magnífico da Netflix para melhorar sua segunda-feira e fazer você se sentir melhor Alamar Cinena 161 / Netflix

O filme magnífico da Netflix para melhorar sua segunda-feira e fazer você se sentir melhor

O cinema espanhol, conhecido por produzir filmes quase sempre impecáveis, também se destaca por sua regularidade. Não há um ano sequer, com ou sem pandemia, em que o público não se surpreenda com um novo lançamento dessa indústria cinematográfica, cada vez mais vigorosa, não apenas pelo substancial investimento estatal, mas principalmente pela filosofia de reunir profissionais que se recusam a estagnar intelectualmente. “Viver Duas Vezes” é mais um exemplo do que o cinema pode alcançar quando está em mãos zelosas.

Dirigido por María Ripoll e lançado em 2019, o filme peca principalmente em um aspecto: sua duração. Pouco mais de cem minutos acabam sendo insuficientes para apresentar plenamente o conflito central, apesar do núcleo de personagens importantes se resumir a quatro: um casal de adultos na casa dos trinta, uma garota de dez ou onze anos e um homem de setenta. É justamente essa última dupla que conduz a narrativa, e é prazeroso saber que um dia Oscar Martínez possa passar o bastão para um profissional à sua altura.

Dizer que Martínez é atualmente não apenas um grande, mas o maior nome do cinema espanhol, é redundante. “O Cidadão Ilustre” (2016), dirigido por Gastón Duprat e Mariano Cohn, uma homenagem livremente inspirada em sua biografia como argentino que fez carreira e alcançou sucesso na Espanha, contribuiu para que o veterano se tornasse mais conhecido, especialmente entre os públicos mais jovens. Mesmo que não fosse um dos melhores filmes de todos os tempos, essa característica já faria com que o trabalho de Duprat e Cohn valesse a pena.

É impressionante a habilidade refinada de Martínez de transformar um papel aparentemente frio e apagado em algo que, aos poucos, domina toda a história, e é possível garantir que a própria diretora tenha ficado perplexa com o corte final. Diferente do pomposo Daniel Mantovani da trama de 2016, cuja personalidade é evidente desde o início, Emilio, apesar de sua rabugice caricata, é uma tela em branco. O professor aposentado de matemática “de universidade”, como ele gosta de ressaltar, acaba passando despercebido em muitos trechos de “Viver Duas Vezes”.

Contrariando a inferência de que isso seria um demérito à performance do ator, é justamente o oposto. A grande beleza do personagem que Martínez traz à vida reside no fato de que Emilio, talvez pressentindo o que está por vir, prefere focar seus esforços em sua meta maior, que sintetiza a razão de ser do roteiro de María Mínguez.

Ripoll opta por não tirar seu protagonista de sua rotina para explicar o que se passa em seu filme, mas sim trazer ao espectador as lembranças de um Emilio ainda garoto, às voltas com a descoberta do primeiro amor, convidando-o a mergulhar nessas memórias, auxiliada pela fotografia de baixa resolução, ligeiramente granulada, de Núria Roldos. A sequência, tão lacônica quanto poética, antecede a introdução efetiva do protagonista, um senhor tomando uma refeição no La Pilareta, o histórico café no coração de Valência, onde é chamado pelo nome e todos conhecem suas manias, inclusive a de pedir o pão separado do tomate.

Desta vez, o pão veio junto do tomate, pois Mario, o novo cozinheiro, que permanece incógnito, não foi avisado pela garçonete; Emilio, no entanto, não reclama. Parece absorto em um pensamento mais importante que manter cada sabor em sua ordem correta de desfrute, enquanto completa o desafio do sudoku, ou melhor, do quadrado mágico.

Como fica claro algumas cenas depois, o personagem de Martínez começa a sofrer de um Alzheimer ainda latente, mas tenta esconder sua nova condição da filha, Julia, vivida por uma Inma Cuesta em plena forma, que acaba descobrindo tudo graças a um arranjo bem orquestrado por Mínguez. Novamente, imagens de um Emilio adolescente são intercaladas entre a descoberta da doença e o encontro com Julia, seu marido Felipe, interpretado por Nacho López, e Blanca, a filha do casal e neta de Emilio, brilhantemente interpretada por Mafalda Carbonell. Em torno de uma mesa no almoço de domingo, pequenas desavenças entre os comensais vão se desvelando, especialmente entre Blanca e o avô.

Sempre discreto, Emilio fica um tanto chocado pela forma artificialmente cortês com que todos o tratam, gentilezas que só se justificam porque o consideram inválido, o que, queira ou não, remete à ideia de uma morte próxima. Bem, dizer que todos o tratam com essa desfaçatez seria injusto; a personagem de Carbonell, que na vida real tem uma deficiência motora, provoca o avô sugerindo que seu cérebro não está mais apto a responder às suas piadas, e Emilio não só devolve os insultos como também se autossatiriza. Sob essa atmosfera que pode parecer hostil, mas que apenas expõe as implicâncias de dois indivíduos que se amam de verdade, Emilio começa a cogitar uma viagem a Navarra, onde nasceu, para tentar um reencontro com Margarita, vivida por Isabel Requena, seu primeiro amor com quem ele começou a sonhar acordado.

Após algumas reviravoltas, inicialmente acompanhado apenas por Blanca, Emilio passa a contar também com a filha e o genro, ainda que o casamento deles esteja por um fio devido a uma aventura extraconjugal de Felipe. Ripoll transforma seu filme em um road movie cheio de momentos impagáveis, como quando os quatro chegam à antiga casa de infância de Margarita e, claro, ela já não mora mais lá. Quem os recebe é Angustias, interpretada por Mamen García, cujo talento empresta ao filme a leveza e a comicidade de que ele precisava. Quando conseguem o endereço, não pelas mãos da atrapalhada Angustias, mas graças à ajuda de Blanca, em um episódio quase improvável, voltam a Navarra para uma segunda tentativa, e a mulher que Emilio encontra já não é mais Margarita.

Da mesma forma que em “O Cidadão Ilustre”, o personagem faz a pior escolha possível: ignorar todos os muitos sinais que a vida lhe dá e querer reviver uma existência que já não existe. Desgraçadamente schopenhaueriano, o primeiro reencontro entre Emilio e Margarita dá lugar a um regresso ao passado, irreal mas possível, onde ambos estão novamente aos dezessete, ou até antes, sem saber como se passaram os mais de cinquenta anos. Mas esses anos já não têm mais importância alguma.


Filme: Viver Duas Vezes
Direção: María Ripoll
Ano: 2019
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 9/10