Pornochanchada com Sônia Braga, para maiores de 18 anos, chegou à Netflix Divulgação / Imperial Filmes

Pornochanchada com Sônia Braga, para maiores de 18 anos, chegou à Netflix

Nelson Rodrigues (1912-1980) considerava Neville d’Almeida um gênio. E estava certo. Poucos cineastas souberam materializar o torvelinho de traumas, complexos, paranoias e, por evidente, perversões sexuais que residem com garbo na obra do escritor, todos esses assuntos em que Nelson esgrimia um moralismo sagaz acerca das transformações que se erguiam diante de seus olhos, nos costumes, na política e nas artes, usando narrativas como a de “A Dama do Lotação” para esfregar na cara dos hipócritas seu desprezo pelo que as pessoas fazem na calada da noite, por debaixo dos panos, escondendo-se do julgamento de seus pares e do seu próprio. 

O absurdo de uma linda mulher, recém-casada, que precisa buscar sexo fortuito porque não sente prazer com o marido — que a estupra na lua-de-mel ao ouvir dela que os folguedos de alcova conspurcam o matrimônio —, é apenas a cereja de um bolo pleno de camadas, sob as quais se esconde o que de fato importa. Nelson sabia lançar mão de motes escandalosos para dizer suas verdades fesceninas e urgentes, e D’Almeida peneirava esses enredos da montanha de peças, contos, crônicas e novelas de onde veio-lhe a inspiração e a coragem para verter em linguagem fílmica o registro em que se ancora “A Dama do Lotação e Outros Contos e Crônicas”, antologia de histórias curtas publicadas pelo jornalista e escritor entre 1951 e 1961 na coluna A vida como ela é… do jornal “Última Hora”, reimpressas em 1992. Nelson dizia o óbvio e não aborrecia nunca, qualidade cada vez mais rara num mundo politicamente correto, o outro nome da aleivosia.

Embora ninguém saiba muito bem por que o amor começa, qualquer um é capaz de elencar um interminável rol de motivos que justifiquem ou ao menos deem alguma explicação sobre seu fim, que em certas ocasiões concorre para outros términos. Por mais que se esteja sempre à mercê das ardilosas trapaças do destino, reconhecer-se apaixonado — e mais: permitir-se se apaixonar — é uma das emoções mais avassaladoras que se tem numa vida longa ou curta demais, feliz ou desditosa, ainda que o ligeiro conforto desse sentimento não vença a angústia que desnorteia ao jogar luz sobre nosso lado de sombras. 

O envolvimento romântico de duas pessoas enfrenta provações de toda natureza, às vezes mais duras que a morte. Depois da longa sequência em que o diretor-roteirista mostra uma festa de casamento, Solange e Carlinhos aparecem trocando as primeiras carícias já devidamente abençoados pela Igreja, mas tudo principia a desandar antes que tirem a roupa. Solange não quer beijar na boca o marido, mas acaba cedendo, e D’Almeida capta num primeiríssimo plano o rosto dos atores, numa batalha algo repugnante em que o público tem uma ideia clara do rol de abjeções que está por vir. 

Quando afinal vão para a cama, Solange reforça que não deseja mesmo nenhuma modalidade de intercurso carnal com Carlinhos, mas é pega à força, com tal violência que tem a camisola branca toda rasgada pelo cônjuge, momento em que “A Dama do Lotação” é alçado à condição de um insólito espetáculo visual, marcando a transição da personagem, antes virginal, envergando os vestidos brancos que evidenciam uma donzelice um tanto artificiosa, para a vamp despudorada em tomara-que-caias vermelhos e verdes-limão e saias rodadas com botões do cós ao joelho, para facilitar suas aventuras rodoviárias, joias do figurino de Marilia Carneiro. 

Como se poderia supor, o longa passa a vibrar em outra frequência quando Sônia Braga começa a roçar em estranhos em coletivos lotados, ainda que sua carreira de meretriz honrada, incapaz de cobrar pelo serviço, parte do incômodo episódio no qual é abordada por um ex-contínuo de Carlinhos, só os dois a bordo. 

Mesmo que as cenas em que aparecem juntos rareiem no decorrer dos 95 minutos, Braga e Nuno Leal Maia mantêm a parceria quente até o desfecho meio insípido, em que uma atormentada Solange implora para que o psicanalista vivido por Claudio Marzo (1940-2015) acuse-a de promíscua, de depravada, e aponte a cura para sua doença. 

Essa pinimba com terapeutas de toda ordem, tão presente em Nelson, mas irrelevante aqui, é compensada com o segmento em que a anti-heroína de Braga seduz Alexandre, o sogro interpretado por Jorge Dória (1920-2013), e o leva a um “hotel de alta rotatividade”, só para escarrar o asco que devota a seu conservadorismo de fachada. E todos gozamos com ela.


Filme: A Dama do Lotação
Direção: Neville d’Almeida 
Ano: 1978
Gêneros: Drama
Nota: 9/10