Divórcio. Talvez seja esse o segredo das pessoas tidas como autênticas. É preciso divorciar-se de vez em quando. Aquele movimento de quem, após muito balé em fio de barbante, pega destemidamente uma caneta e mete uma rubrica sobre o papel da decisão.
As pessoas se divorciam de si mesmas diversas vezes ao longo da vida. Olham-se nas fotos e não se identificam mais consigo, trocam o estilo das roupas, afastam-se de algumas amizades que, por uma ou outra razão, descobrem não ser tão amigas assim.
O divórcio também pode ser do companheiro. As melhores versões só são entregues ao outro se houver a chance de atualizar as antigas, melhorando-as com os tropeços e oferecendo ao parceiro os aprimoramentos paridos pelas já cansadas versões. Tais coisas só se conseguem fugindo do comodismo — esse abutre que devora a carne quando a coragem de espantá-lo não vem. Divorciar exige fôlego.
Mas, a cada vez que o divórcio ocorre, acabam ficando em algum lugar do organismo versões anteriores. Somos um mosaico sincrético e nem sempre coerente de tudo o que já fomos e ainda somos, ou fomos e deixamos de ser. De cada arrependimento que ainda amarga na boca, das pequenas vitórias, das conversas sem sentido com pessoas que rapidamente nos fugirão da mente, dos remendos que, a sangue frio, fomos obrigados a fazer após doloridos — e importantes — tombos levados…
Nem todo divórcio é feliz. Em uma de suas obras, a escritora madrilena Rosa Montero conta um episódio de sua juventude, em que se deu a uma hiperbólica e apocalíptica paixão com M., um conhecido ator. Porte atlético, olhos ressaqueados e um sotaque carismático a consumiram até que a pólvora chegasse à bomba que, de ofício, os amores desesperados trazem a tiracolo. Uma sequência de infortúnios fez com que se separassem com ferocidade e rancor. Mais de vinte anos depois, ao reencontrar M., custou a reconhecê-lo; e encontrou em seu abdome antes definido uma vergonhosa protuberância sobre o cinto; em seus antes convidativos olhos, um taciturno túmulo esverdeado; e em sua fala outrora interessante, a insuportável certeza de que M. alcançara sua pior faceta. “Se você soubesse a quantidade de vidas diferentes que pode haver numa única vida…”, reflete a autora. O ator deixara sua versão involuída e sombria tomar conta, escamoteando sua já quase inexistente luz.
Mas há também divórcios de sucesso, que agregam mais do que segregam. Separação seguida de reatamento. É como cuidadosamente abrir um guarda-roupa e escolher a variação que, devidamente lavada e passada, fará mais sentido naquele momento. Há dias de usar terno e gravata, mas também há dias de usar macacões floridos com botas de montaria. Há dias de caviar e dias de miojo; de ser cenho franzido e sorriso depravado; de ler Proust e de ler horóscopo no jornal. E todos esses dias podem coexistir sem que o indivíduo perca a identidade.
Aliás, causa certo espanto que romances ruins, telenovelas e horóscopos de jornal provoquem tamanha fúria de intelectualoides. Como se qualquer dessas bobagens fosse algo pior do que a grande parte das burrices que se fazem e pensam no dia a dia, acreditando-se serem importantes. Há algo de corajoso em quem se assume bobo de vez em quando, uma humanidade cálida, um reconhecimento bem-humorado de quão insignificante e zombeteiro é fazer parte da humanidade. Personalidade é ser muitos em um só, é saber que os raros momentos de grandeza só se avolumam porque rodeados de ninharias humanoides.
Pode ser que o segredo dos positivamente autênticos seja aprender a divorciar-se. Abandonar algumas facetas, inventar ou repaginar outras, aprender com as que já passaram, mas sobretudo assumir cada uma delas… e assim ir tocando a nave sem freio da existência.