Um preso chamado Cain carrega uma forte carga simbólica em torno de sua figura triste. Autorizado a sair da prisão para visitar sua mãe, que está morrendo de câncer pancreático, Cain não consegue vê-la viva, mas aproveita a chance de estar fora para ajustar contas com o policial que o prendeu e quase o matou com uma surra, uma humilhação que ele não esquece. Cada segundo de liberdade temporária de Cain, homônimo do irmão amaldiçoado do “Gênesis”, será usado em seu plano de vingança, que inclui, como na narrativa bíblica, matar o irmão que ele acha que o traiu.
Sua mente e seu coração se unem nesse processo, enquanto ele dedica parte de suas energias a se lembrar de momentos agradáveis; no entanto, por mais que se esforce, todas as poucas imagens de uma época menos melancólica são obscurecidas pela força dos momentos ruins. Sua grande luta é travada dentro de si mesmo, contra pensamentos que querem enlouquecê-lo. A vontade de reparação, tão obsessiva quanto cheia de fúria, é seu único estímulo para continuar vivendo, embora saiba que, no fundo, a vida para ele está perdida.
“Implacável” (2019) faz jus ao nome e se vale desse personagem, a própria encarnação da mudança, para explorar ideias como determinação e desajuste social, ingredientes explosivos que fermentam na quietude de almas encarceradas no mais sombrio dos calabouços. O diretor Jesse V. Johnson é diligente em atender aos anseios do espectador e proporciona inúmeras sequências de confrontos físicos que tornam filmes como este uma atração à parte no vasto universo do cinema de ação, definido pela onipresença de protagonistas visivelmente perdidos no pouco de dignidade que ainda lhes resta, mas que sabem usar seus predicados viris para resgatar o gosto pela vida.
Esse nível exacerbado de testosterona, que mais envenena do que revigora, é personificado em um homem antes nem tão vigoroso, mas certamente muito mais feliz — ou menos vulnerável à tristeza. Curiosamente, quanto mais seus músculos se destacam, mais aparente se torna sua fraqueza, um jogo retórico tão sutil que é preciso respirar um pouco e refletir sobre o que é exposto para se chegar a essa conclusão.
Johnson aproveita bem essa estética ao investir em seu personagem central. Vivido por Scott Adkins, Cain começa como um criminoso desacreditado pelos bandidos que realmente têm alguma relevância no submundo, entre eles seu irmão, Lincoln, interpretado por Craig Fairbrass. A partir desse ponto, o diretor abusa dos conflitos familiares em que o roteiro de Johnson e Stu Small se ramifica, ora sob a perspectiva de Cain, ora sob a ótica de Lincoln, que está cada vez mais excluído das decisões e dos rumos que os grandes criminosos dão a seus negócios, enquanto este é um dos mandachuvas de toda atividade ilegal, principalmente a agiotagem.
A primeira reviravolta envolve uma traição de Lincoln contra o anti-herói de Adkins, que o leva à prisão; preso, Cain descobre um vigor descomunal, que o impele a surrar qualquer um que o incomode. O tempo ocioso serve como incentivo para treinos solitários, e a transformação física do protagonista passa a ser um dos atrativos da história. Cada vez mais confiante, Cain não hesita em lutar ao menor sinal de desrespeito, até que é pego de surpresa em uma manobra desleal de seu adversário, daí surgindo a aparência bestial que se torna sua marca registrada.
Quando vislumbra uma oportunidade arriscada de fugir, ele se lança com tudo na empreitada. Consegue escapar e vai direto para o pub de Bez, exclusivo para mafiosos de alto escalão. Não é bem-vindo, claro, mas entra mesmo assim, não sem antes distribuir alguns socos nos infelizes encarregados de guardar a entrada. Pede uma cerveja à anfitriã, papel de Kierston Wareing, e enquanto Lincoln, frequentador assíduo do bar, não chega, Cain aproveita para deixar claro que não está mais disposto a nenhuma diplomacia.
A ação se desenrola basicamente do ponto de vista dos conflitos entre os irmãos, levados às últimas consequências em uma narrativa cada vez mais sangrenta a cada novo pequeno anticlímax. O que realmente importa é o confronto entre Cain e Lincoln, passado quase todo no estabelecimento de Bez, até que um dos dois ceda. A performance de Adkins, surpreendente — e ajudada pela boa caracterização, deve-se frisar — resulta em uma história em que a violência nunca deixa de ser o eixo, mas que também adquire um tom verossímil de drama. Aqui, quanto mais cicatrizes, melhor.
Filme: Implacável
Direção: Jesse V. Johnson
Ano: 2019
Gêneros: Ação/Crime
Nota: 8/10