Baseado em livro de Guimarães Rosa, um dos mais belos filmes da história do cinema brasileiro chega à Netflix

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Talvez o destino do Brasil seja mesmo continuar para sempre essa pátria estranha, essa mãe nada gentil, uma terra estrangeira até para os filhos desse solo que dele nunca conseguem livrar-se. No eterno país do futuro retratado e detratado na antiutopia do ácido-romântico Stefan Zweig (1881-1942), Deus e o diabo, o mal e o bem, a verdade e a mentira, mais que se complementam, se irmanam.

Poucos autores souberam decifrar os enigmas de um pedaço de mundo a um só tempo tão encantador e brutal como João Guimarães Rosa (1908-1967), decerto porque também ele não era um só. Mestre da palavra, Rosa era uma multidão num homem só, sertanejo, médico, diplomata, e antes de tudo escritor, e antes de escritor ainda, menino, daqueles bem arteiros, que nunca se satisfaziam com o não dos adultos, sempre ocupados para sonhar.

“Mutum”, a bela adaptação de Sandra Kogut para “Campo Geral” (1964), acende o espírito roseano que pulsa em cada brasileiro, venha de onde vier, do sertão, do litoral, da caatinga, da floresta, lembrando-nos daquilo tudo que poderíamos ter sido e não fomos. Num dos últimos trabalhos do romancista, Miguilim, cuja jornada ganha desdobramentos em volumes póstumos como “Miguilim” (1986) e “Manuelzão e Miguilim” (2021), volta na pele de Thiago, filho não de Manuelzão, mas de Bero, em tudo o mais conservando-se o riquíssimo universo que Rosa tirou das veredas de Minas Gerais e eternizou nas páginas de seus livros, tesouro maior de que pode desfrutar nosso povo.

Thiago volta para a roça depois de uma temporada na cidade, trazendo consigo fotos de mulheres nuas que distribui entre os irmãos pensando se tratar de santas, como se vê nos impressos largados nos bancos das igrejas. Nessa passagem, Kogut e a corroteirista Ana Luiza Martins Costa preparam os ânimos do espectador para receber o protagonista como um menino excessivamente ingênuo, mesmo para alguém que passa boa parte da vida a contar apenas com a imaginação, transformando latas de doce em caminhões ou adquirindo fazendas suntuosas com cédulas de brinquedo.

Juntocom ele nessas novas existências inventadas está sempre Felipe, o irmão caçula interpretado por Wallison Felipe Leal Barroso, com quem partilha mais que os anseios de um dia conhecer à praia ou estudar e aprender um ofício. Numa tarde de jogos no quintal de terra batida do casebre em que moram, Felipe o chama, preocupado com uma briga entre o pai e a mãe, dentro do quarto do casal. A diretora mantém a câmera da porta para fora, mas se tem claro que Bero desfere golpes contra a esposa, e em mais alguns instantes se entende que ele a apanhou na cama com o cunhado, seu irmão. A trama se encaminha para um segundo ato sereno, com algumas tomadas de pai e filho desbravando a capoeira até o roçado de mandioca, até que a psicopatia de Bero aflora e determina a virada ditosa para Thiago.

Thiago da Silva Mariz e João Miguel são a alma de um filme sobre encontros e desencontros de um filho e um pai que se perdem um do outro e de si próprios, num elenco feito de excelentes atores não-profissionais. Como o mutum, a ave negra que só canta à noite, a formosura do texto de Rosa só se revela para quem a procura. Leva-se muito tempo para digerir tanta grandeza.


Filme: Mutum
Direção: Sandra Kogut
Ano: 2007
Gêneros: Drama/Coming-of-age
Nota: 10