Filme na Netflix, digno de Oscar, vai tocar cada cantinho da sua alma Divulgação / Focus Features

Filme na Netflix, digno de Oscar, vai tocar cada cantinho da sua alma

Não corresponder ao que esperam de nós já foi muito mais doído. Hoje, existem categorias sociais o bastante para quantas sejam as aspirações, os sonhos, as carências das pessoas comuns, que só precisam ser respeitadas no mais básico que compõe a natureza de cada um: sua identidade. 

Sem precipitações, Joel Edgerton é um dos realizadores com os quais o cinema tem podido contar quando se trata de dar corpo a narrativas incômodas, e nisso ele vem se saindo melhor que a encomenda. Em “O Presente” (2015), o diretor já havia surpreendido ao apresentar um trabalho coeso, exatamente do que o enredo precisava para convencer quem assiste de que aquela era uma história que merecia seu espaço. 

Em “Boy Erased: Uma Verdade Anulada”, seu segundo filme, Edgerton segura as rédeas de uma sequência de acontecimentos que poderia descambar para um dramalhão sem conserto, empenhando-se por desfazer os nós de um verdadeiro drama de família, ainda mais cortante quando se sabe ter inspiração na vida como ela é, com seus contornos indefinidos e todas as suas nuanças mais lúgubres.

A adaptação de Edgerton para o livro de memórias de mesmo nome de Garrard Conley publicado em 2016 muda o nome do protagonista para Jared Eamons, mas conserva todo o peso do relato autobiográfico de Conley. Jared é o filho único de uma típica família tradicional americana do Arkansas. Ao ingressar na universidade, tem uma experiência sexual nada prazerosa com um colega de quarto. O outro estudante, certamente temendo represálias, se previne e telefona para Nancy e Marshall, os pais de Jared, dizendo que fora seduzido e molestado por ele. O embate do garoto frente a seus próprios desejos é o clímax em torno do qual “Boy Erased” se move, e a partir dele tudo muda na vida de alguém que era tido por modelo de correção moral, virtude, recato. 

O elemento religioso vai entrando como peça-chave para que se compreenda a delicadeza da questão no instante em que Marshall, dono de uma concessionária de automóveis e pastor da Igreja Batista, registra o filho num programa para reversão de condutas indesejáveis, o que inclui abuso de álcool e drogas, consumo de pornografia, prática de violência doméstica e, claro, homossexualidade. Tudo parece ir bem na medida do possível, até que as coisas começam a sair do controle. Jared identifica os expedientes de tortura psicológica empregados pelos “terapeutas” e os denuncia à mãe, Nancy, que aos poucos tem cada vez mais certeza de que a iniciativa do marido não fora uma boa ideia.

Os tons de dourado escolhidos por Eduard Grau conferem a “Boy Erased” uma aura de devaneio que perdura até as cenas em que Jared é empurrado para o inferno do qual só ouvira falar nos sermões do pai — e que pouco comoviam-no. Como fizera no ótimo “Manchester à Beira-Mar” (2016), o coming-of-age de Kenneth Lonergan pelo qual fora indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, Lucas Hedges materializa essa inquietação juvenil transformada em revolta, despertando a compaixão tardia de Nancy e Marshall, com Nicole Kidman e Russell Crowe à vontade, prestando-se a um apoio digno do talento de Hedges. 

Edgerton deslinda um assunto espinhoso como a sexualidade sem falsas ilusões, dizendo o óbvio nas entrelinhas e lembrando que pode-se ser assustadoramente infeliz sendo-se o que se é. Entretanto, a hipocrisia dos falsos profetas é o que resta de mais simbólico nesse filme corajoso: um dos coordenadores do projeto de “cura” da homossexualidade a que Garrard Conley se submetera terminou se casando com um dos ex-internos.


Filme: Boy Erased: Uma Verdade Anulada
Direção: Joel Edgerton
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Coming-of-age
Nota: 8/10