Não corresponder ao que esperam de nós já foi muito mais doído. Hoje, existem categorias sociais o bastante para quantas sejam as aspirações, os sonhos, as carências das pessoas comuns, que só precisam ser respeitadas no mais básico que compõe a natureza de cada um: sua identidade.
Sem precipitações, Joel Edgerton é um dos realizadores com os quais o cinema tem podido contar quando se trata de dar corpo a narrativas incômodas, e nisso ele vem se saindo melhor que a encomenda. Em “O Presente” (2015), o diretor já havia surpreendido ao apresentar um trabalho coeso, exatamente do que o enredo precisava para convencer quem assiste de que aquela era uma história que merecia seu espaço.
Em “Boy Erased: Uma Verdade Anulada”, seu segundo filme, Edgerton segura as rédeas de uma sequência de acontecimentos que poderia descambar para um dramalhão sem conserto, empenhando-se por desfazer os nós de um verdadeiro drama de família, ainda mais cortante quando se sabe ter inspiração na vida como ela é, com seus contornos indefinidos e todas as suas nuanças mais lúgubres.
A adaptação de Edgerton para o livro de memórias de mesmo nome de Garrard Conley publicado em 2016 muda o nome do protagonista para Jared Eamons, mas conserva todo o peso do relato autobiográfico de Conley. Jared é o filho único de uma típica família tradicional americana do Arkansas. Ao ingressar na universidade, tem uma experiência sexual nada prazerosa com um colega de quarto. O outro estudante, certamente temendo represálias, se previne e telefona para Nancy e Marshall, os pais de Jared, dizendo que fora seduzido e molestado por ele. O embate do garoto frente a seus próprios desejos é o clímax em torno do qual “Boy Erased” se move, e a partir dele tudo muda na vida de alguém que era tido por modelo de correção moral, virtude, recato.
O elemento religioso vai entrando como peça-chave para que se compreenda a delicadeza da questão no instante em que Marshall, dono de uma concessionária de automóveis e pastor da Igreja Batista, registra o filho num programa para reversão de condutas indesejáveis, o que inclui abuso de álcool e drogas, consumo de pornografia, prática de violência doméstica e, claro, homossexualidade. Tudo parece ir bem na medida do possível, até que as coisas começam a sair do controle. Jared identifica os expedientes de tortura psicológica empregados pelos “terapeutas” e os denuncia à mãe, Nancy, que aos poucos tem cada vez mais certeza de que a iniciativa do marido não fora uma boa ideia.
Os tons de dourado escolhidos por Eduard Grau conferem a “Boy Erased” uma aura de devaneio que perdura até as cenas em que Jared é empurrado para o inferno do qual só ouvira falar nos sermões do pai — e que pouco comoviam-no. Como fizera no ótimo “Manchester à Beira-Mar” (2016), o coming-of-age de Kenneth Lonergan pelo qual fora indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, Lucas Hedges materializa essa inquietação juvenil transformada em revolta, despertando a compaixão tardia de Nancy e Marshall, com Nicole Kidman e Russell Crowe à vontade, prestando-se a um apoio digno do talento de Hedges.
Edgerton deslinda um assunto espinhoso como a sexualidade sem falsas ilusões, dizendo o óbvio nas entrelinhas e lembrando que pode-se ser assustadoramente infeliz sendo-se o que se é. Entretanto, a hipocrisia dos falsos profetas é o que resta de mais simbólico nesse filme corajoso: um dos coordenadores do projeto de “cura” da homossexualidade a que Garrard Conley se submetera terminou se casando com um dos ex-internos.
Filme: Boy Erased: Uma Verdade Anulada
Direção: Joel Edgerton
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Coming-of-age
Nota: 8/10