Rainer Maria Rilke esteve na Rússia, conheceu Tolstói e manteve contato com Marina Tsvietáieva e Boris Pasternak. Ele se tornou um “guia” poético e espiritual dos bardos russos
O livro “Cartas del Verano de 1926” (Minúscula, 439 páginas) contém as missivas de Boris Pasternak, Marina Tsvietáieva e Rainer Maria Rilke. Trata-se de uma edição que, impressa em Barcelona, circula nas livrarias argentinas (adquiri meu exemplar na 48ª Feira do Livro de Buenos Aires, em abril deste ano). As traduções do russo são de Selma Ancira e as do alemão de Adan Kovacsics. Os poemas foram vertidos para o espanhol por Selma Ancira e Francisco Segovia. A edição e a introdução são de Konstantín Azadovski, Evguêni Pasternak e Elena Pasternak. Há um importante índice de nomes.
Em 1926, o ano em que morreu Rilke, aos 51 anos, o bardo de língua alemã e os poetas russos Boris Pasternak e Marina Tsvietáieva trocaram cartas excepcionais.
A paixão de Rilke pela Rússia
Apaixonado pela Rússia — os russos, segundo o poeta, eram “um povo especial”, o “eleito de Deus” —, Rilke visitou o país pela primeira vez, acompanhado da escritora Lou Andreas-Salomé e do orientalista Friedrich Carl Andreia, em abril de 1899.
Ao escritor polonês W. Hulewicz, Rilke relatou: “Pela primeira vez em minha vida se apoderou de mim uma sensação inefável, algo assim como um sentimento de pátria”.
O primeiro contato de Rilke no país não foi com Boris Pasternak, que era um menino de 9 anos, e sim com seu pai, Leonid Ósipovich Pasternak, um pintor renomado. O artista plástico deixou registrado que o poeta “era muito jovem, loiro e de aspecto frágil”.
Rilke queria conhecer o escritor Liev Tolstói e pediu a intermediação de Leonid Pasternak. O artista plástico estava fazendo ilustrações para o romance “Ressurreição” e se encontrava com frequência com o prosador. A visita ocorreu no bairro Jamóvniki, em Moscou.
A escritora russa Sofia Shil, amiga de Rilke, escreveu: “Em sua imaginação de poeta, a Rússia aparecia como um país de sonhos proféticos e princípios patriarcais, oposto ao industrializado Ocidente”.
A Rússia era vista por Rilke como um “país de conto” — quase fabular. Ele escreveu para o poeta Hugo Salus: “É difícil expressar quanta novidade há neste país, quanto futuro”.
Os autores da introdução postulam que “foi precisamente na Rússia onde Rilke se sentiu um verdadeiro artista, onde acreditou, de maneira definitiva, na sua vocação”.
Ao voltar para a Alemanha, Rilke começou a aprender russo e a estudar a cultura da terra do prosador Ivan Turguêniev e da poeta Anna Akhmátova. Lia os clássicos do país de Púchkin e traduziu “A Gaivota”, de Anton Tchékhov, para o alemão. Traduziu também poemas esparsos de K. Fófanov e S. Drozhzhin.
No dia 5 de fevereiro de 1900, Rilke escreveu para Leonid Pasternak: “A Rússia resultou para mim algo mais essencial que um acontecimento fortuito”.
Na mesma carta Rilke fala do “prazer” de ler o poeta Mikhail Liérmontov e o prosador Tolstói em russo.
Rilke e Lou Andreas-Salomé voltaram à Rússia, em 9 de maio de 1900, e o objetivo de ambos era visitar Tolstói, em Yásnaia Poliana. Na estação de trem encontraram-se com Leonid Pasternak e Boris Pasternak, então com 10 anos.
Boris Pasternak nunca se esqueceu do único encontro pessoal com Rilke. O poeta passou a ser considerado pelo russo como uma figura inspiradora.
Empolgado com tudo da Rússia, Rilke traduziu Dostoiévski e Tchékhov e escreveu artigos sobre a arte russa. “As impressões russas de Rilke estão refletidas nas obras ‘O Livro de Horas’, ‘Historias del Buen Diós’ e poesias isoladas”, informam os organizadores das cartas.
Em 1902, casado com a escultora Clara Westhoff e pai de uma filha, Rilke tentou trabalhar na Rússia. Entrou em contato com A. S. Suvorin, dono do periódico “Tempo Novo”, mas não recebeu resposta. Ele queria escrever no jornal.
Em viagens, Rilke apreciava se aproximar de escritores, pintores e atores russos. Conversou com Maksim Górki, Ivan Búnin e A. Benois. Ele apreciava “El cantar de las huestes de Ígor” e fez uma tradução para o alemão. De Búnin, leu várias obras, como “O Amor de Mitia”, e leu, “com prazer”, “Los Señores Golovliov”, de Saltikov-Shedrín.
Em 1925, Rilke “era percebido como a encarnação viva da poesia”, o que Marina Tsvietáieva e Boris Pasternak mencionam nas primeiras cartas enviadas ao poeta.
A vocação da poeta Tsvietáieva
A vida na década de 1920, logo depois da Grande Guerra (como a Primeira Guerra Mundial era então chamada), não era das mais fáceis. Mas, “por Rilke, nosso tempo será perdoado”, vaticinou Marina Tsvietáieva.
A russa, poeta reconhecida, “considerava sua vocação pela poesia como uma missão e um destino”. Boris Pasternak lia, com fervor, “Para Festejarme”, “O Livro das Imagens” e “O Livro de Horas”, de Rilke. Começou a traduzir sua poesia e, mais tarde, disse que, como poeta, navegava nas águas de Rilke.
De acordo com os autores da introdução, “Pasternak não exagerava ao afirmar que devia a Rilke toda sua formação espiritual (coisa que ele confessou ao próprio Rilke). Sua tendência a um perfeccionismo artístico produtivo, entendido como princípio regenerador da vida, foi o que motivou que, desde a juventude, renunciasse aos extremos do romantismo”.
Um dos autores prediletos de Boris Pasternak, seguindo Rilke, era Jens Peter Jacobson. O poemário “Minha Irmã Vida” era, de alguma maneira, rilkiano. O bardo russo havia operado, neste livro, para que a elaboração formal parecesse natural, não artificial.
De início, Boris Pasternak dizia que não compreendia a poesia de Marina Tsvietáieva. Porém, mesmerizado pela leitura de “Verstas”, de 1921, escreveu uma carta entusiasmada à poeta. Na sua autobiografia, disse: “Minha boca lançou um grito maravilhado ante o abismo de pureza e força que se revelava a mim”.
Boris Pasternak havia sido conquistado, sublinhou, “pela potência lírica da forma tsvietaieviana”, por sua “firmeza concisa e condensada, que, em vez de quedar-se sem alento em versos livres, abarcava, sem romper a tensão rítmica, toda uma sucessão de estrofes mediante o desenvolvimento de suas frases”.
Marina Tsvietáieva e Boris Pasternak se tornaram, como poetas, íntimos. “Como te amou e quanto tempo, toda a vida! Só a papai e a ti os amou não desamando-os”, escreveu, em 1955, Ariadna Efrón, filha da poeta, para Boris Pasternak.
Os coordenadores do livro de missivas postulam que “o epistolário entre os dois poetas, Tsvietáieva e Pasternak, é, sem dúvida, um dos acontecimentos mais significativos da história da literatura russa do nosso tempo”.
Em 1923, Boris Pasternak enviou a Marina Tsvietáieva seu livro “Temas e Variações”. Na dedicatória, escreve: “À incomparável poeta Marina Tsvietáieva”.
Quando Boris Pasternak mostra desalento com a poesia, Marina Tsvietáieva o consola, mas sem passar a mão na sua cachola: “Com a poesia, meu amigo, é como com o amor: enquanto ele não te abandona… Tu é servo da lira”.
“A partir desse momento, a participação e o apoio de Tsvietáieva se converteram para Pasternak numa necessidade vital. No verão de 1925, com o incentivo de Tsvietáieva, Pasternak começa a escrever seu poema ‘O ano de 1905’.”
Em 1925 circulou a “informação” de que Rilke havia morrido. Ele estava doente. Marina Tsvietáieva e Boris Pasternak saíram à cata de informações. Era, por assim dizer, fake news. O bardo russo havia começado a ler “Sonetos a Orfeu”, de Rilke. E percebe que seus caminhos poéticos são semelhantes, o que não quer dizer iguais.
Quando leu “O Ano de 1905”, Marina Tsvietáieva enviou uma carta: “Boris, é absolutamente extraordinário… ‘A palavra como objetivo’… ‘A vida independente da palavra… quando toda a sua poesia, cada linha — é uma luta pela essência. (…) Não é difícil a forma, é difícil a essência”. A leitura de “O poema do fim”, da amiga, o empolga, mais uma vez.
Nas cartas, Boris Pasternak e Marina Tsvietáieva mencionam “Sonetos a Orfeu” e “Elegias de Duíno”. A poeta ficou “maravilhada”. “A partir desse momento e até o final de sua vida, Rilke foi para ela a encarnação da mais alta espiritualidade, o símbolo da poesia mesma.” Ela escreveu para Rilke: “Você, poesia encarnada”. O poeta “é um Poeta com maiúscula, um artista, um criador do eterno”.
Numa carta para Charles Vildrac, Marina Tsvietáieva insiste: “Você e eu estamos unidos por laços de grande afinidade: porque você ama a Rússia e Pasternak e sobretudo a Rilke, que não é um poeta, é a poesia mesma”.
Rilke percebe em Marina Tsvietáieva um par — claro, um par poético. Não uma rival, mas uma sensibilidade parecida e, dada sua forte identidade, tão diferente.
O poeta escreve um quarteto e envia para Marina Tsvietáieva: “Nos tocamos. Com qué? Con Aletazos./ Hasta com lejanías nos tocamos./ Vive um solo poeta, y quien lo lleva/ a quien lo llevaba a veces encuentra” (um dicionário informa que “aletazos” são golpes com asas, o que em português soa estranho. No Chile, é bofetada. Lejanías são distâncias. O restante é de fácil tradução, por isso deixo o trabalho e o prazer para o leitor).
Numa carta para Rilke, Marina Tsvietáieva distingue o Rilke-homem do Rilke-espírito — “que é maior do que o poeta”.
“Você é um fenômeno da natureza, […] o quinto elemento encarnado: a poesia mesma, ou (não é tudo ainda) aquele de onde nasce a poesia e que é maior do que ela (que você)”, assinala Marina Tsvietáieva.
Ao, digamos, “espiritualizar” a natureza”, a poeta agradou a Rilke. “O conceito de uma natureza com alma era importantíssimo para Rilke.” “A natureza ‘viva’ [a alma era a manifestação natural da natureza “viva”] é para Tsvietáieva fonte de criação e poesia.”
Numa carta para Vera Búnina, a poeta anota: “O poeta é — natureza, e não concepção do mundo”.
Rilke, Tsvietáieva e o amor
Numa carta para Rilke, Marina Tsvietáieva, tanto filosofando quando poetizando, diz: “Não amo nem respeito o amor”. E fala do “eterno ódio de Psiquê por Eva, de que não há nada em mim. De Psiquê, pelo contrário — tenho tudo”.
O amor verdadeiro, para Marina Tsvietáieva, é aquele no qual se funde alma e corpo. Ela amava Rilke, afinal? Há, de sua parte, um “amor especial”, digamos espiritual. “A imagem ideal (quer dizer, distante, inalcançável) do ser amado era para Tsvietáieva mais querida que a pessoa física, tangível.”
Maximilián Voloshin disse à poeta: “Quando ama alguém, sempre quer que se vá, para poder sonhar com ele”.
Para Rilke, Marina Tsvietáieva escreveu: “Não vivo em minha boca, e quem me beija, não me alcança. (…) O amor vive de palavras”. Na mesma carta, diz ao amigo-poeta que, dele, “só espera a palavra, nada mais”.
Para Marina Tsvietáieva, “o sonho é o arquétipo de um mundo diferente em que ‘as almas’ vivem e se encontram”. Então, ela sugeria a “comunicação” em sonhos. “Minha forma predileta de comunicação é: o sonho, ver em sonhos”, contou numa carta a Boris Pasternak.
Na mesma carta, a poeta diz: “Uma carta é uma forma de comunicação fora deste mundo, menos perfeita do que o sonho, mas sujeita às mesmas leis; nenhuma nem outra se dão: se sonha e se escreve não quando queremos, e sim quando eles querem: a carta — ser escrita e o sonho — ser sonhado”.
A Rilke, numa carta póstuma (isto mesmo: póstuma), a poeta escreve: “No dia em que alguém nos sonhe juntos — nos encontraremos. (…) Amado, faz que te sonhe com frequência — não, não é exato: vive em meu sonho”.
As cartas de Marina Tsvietáieva, postulam os organizadores do livro, com absoluta razão, “são um fenômeno muito peculiar: não se pode aplicar a elas a denominação tradicional de prosa epistolar. A comunicação com as pessoas que lhe eram próximas espiritualmente provocava nela um estado de criatividade beirando o êxtase”. Por isso, colocava nas missivas “todo o seu temperamento apaixonado, seu ardor [os tradutores usam “fogosidade”] e sua força. Em suas cartas a Pasternak, Rilke ou Steiger, Tsvietáieva era, antes de qualquer outra coisa, uma artista: criava. Poetizada ao limite, às vezes de forma destrutiva, suas relações com pessoas às quais, em geral, nunca havia visto ou havia visto apenas algumas vezes”.
Depois de um primeiro encantamento, a poeta tinha o hábito de desistir das novas amizades, até de maneira “furiosa” — menos com Rilke e Boris Pasternak.
Os organizadores do livro afiançam que “Tsvietáieva dava forma literária a cada uma de suas cartas, as convertia em uma obra de arte em que desafogava sua alma. Assim são suas cartas para Rilke: um gênero particular, fora do tradicional. Poderíamos denominar de ‘lírica epistolar”.
Marina Tsvietáieva tinha especial apreço, como poeta e prosadora, pela imaginação. “A imaginação governa o mundo”, dizia. Sua memória era tributária da imaginação.
M. Slónim disse que Marina Tsvietáieva “afirmava que não só a poesia, mas também a vida humana, em sua totalidade, se move graças à imaginação. […] E que não há amor sem imaginação. O mais importante é a capacidade de apresentar, ante uma pessoa e ante os demais, o inventando como real e o invisível como visível”.
Como Rilke via Marina Tsvietáieva
Rilke escreveu seis cartas para Marina Tsvietáieva, sempre muito interessado no que ela dizia. Havia uma irmandade espiritual entre os dois poetas. “É um diálogo entre duas pessoas que se compreendem quase sem palavras, que estão a par do mesmo segredo. O leitor atento tem de ler suas cartas com imensa atenção, como se estivesse lendo seus versos”, sugerem os organizadores da coletânea.
Rilke e Marina Tsvietáieva comportavam-se, nas cartas, como conjurados, cúmplices. O que escreviam, as ideias que trocavam, resultava de um diálogo entre iguais, no sentido de saber poético. “Iguais a mim em força só encontrei Rilke e Pasternak”, frisou a poeta.
Entretanto, em agosto de 1926, Rilke abandonou, por assim dizer, Marina Tsvietáieva. Uma carta da poeta, de 2 de agosto, o desagradou. “A impetuosidade e a rotundidade da poeta, seu desejo de não ter em conta nem circunstâncias nem convenções, sua aspiração de ser para Rilke a ‘única Rússia’, o fato de relegar Pasternak [a um segundo plano]: tudo isso pareceu a Rilke injustificadamente exagerado e, inclusive, cruel”. Não respondeu mais às cartas da poeta.
Quando Rilke morreu, no mesmo ano, Marina Tsvietáieva ficou arrasada e, de acordo com os organizadores do livro, nunca se recuperou. “Rilke — é minha última alemanidade. Meu idioma predileto, meu país predileto”, disse a poeta.
As relações com Boris Pasternak também esfriaram, mas, em dezembro de 1929, a poeta escreveu para ele: “Tu é a minha última esperança em mim inteira, não posso ser sem ti”.
As cartas de Marina Tsvietáieva para Rilke foram descobertas em 1977. Em 1941, pouco antes de se suicidar, a poeta entregou as cartas para A. P. Riabínina, diretora do Departamento de Literatura dos Povos da União Soviética. Mais tarde, Riabínina entregou as cartas para familiares de Boris Pasternak.
As cartas da poeta para o autor de “Doutor Jivago” — cerca de uma centena — se extraviaram durante a Segunda Guerra Mundial. “Mas havia uma cópia de 18 delas. De três cartas se conservaram os originais. Ademais, Marina Tsvietáieva costuma escrever rascunhos em seus cadernos de trabalho, o que permitiu precisar o texto de algumas cartas que enviou a Pasternak durante o verão de 1926.”