Como resposta à famosa pergunta “Onde está Abel, teu irmão?”, Caim disse (provavelmente com um sorriso cínico no canto dos lábios): “Não sei, por acaso sou eu o guardião de meu irmão?”. Os comentários talmúdicos à passagem revelam que está subentendido na resposta do primeiro fratricida a transferência de responsabilidade para Deus. É como se Caim tivesse dito: “Tu, que cuidas de tudo, deixaste-me matá-lo. Tu, portanto, o mataste”.
Caim jogou a culpa para o Criador. Uma escolha óbvia, dado o contexto genesíaco. Havia pouca gente no mundo. Ou culpava Deus ou culpava os pais. Embora hoje a segunda opção esteja mais em voga, na época, colocar o homicídio na conta dos bate-bocas frequentes entre Adão e Eva provavelmente soaria como um argumento incompreensível. Com o decorrer dos milênios, no entanto, o repertório dos pecadores pegos em flagrante mostrou-se infinito. Culpa-se a timidez, o divórcio dos pais, o adultério da esposa, o governo, a taxa de juros, o desemprego, a destruição da camada de ozônio, a quantidade de plástico nos oceanos…
Mais do que uma justificativa, o culpado busca algum elemento que inverta a realidade, transformando-o, ele próprio, na vítima. No livro “Crítica da Vítima”, publicado no Brasil em 2020 pela editora Âyiné, o professor de literatura Daniele Giglioli analisa como esse fenômeno tornou-se mais complexo (leia-se: consagrado) no mundo contemporâneo. Logo na primeira linha, o autor faz a constatação desoladora: “A vítima é o herói de nosso tempo”. E continua: “Imuniza contra qualquer crítica, garante inocência para além de qualquer dúvida razoável. Como poderia a vítima ser culpada, ou melhor, responsável por alguma coisa? Não fez, foi feito a ela. Não age, padece”.
A crítica do autor italiano recai especialmente sobre a transformação do imaginário da vítima — que ele classifica como uma “máquina mitológica” — em “instrumentum regni”, isto é, num instrumento de poder, numa forma de dominação. É essa estratégia que utilizam os líderes populistas, por exemplo: “Aos sequazes, o líder que se comporta como vítima propõe um implícito e às vezes explícito pacto afetivo, uma identificação por meio da potente alavanca do ressentimento. É o expediente de qualquer populismo”.
Esse fenômeno deplorável concretiza o vaticínio de Nelson Rodrigues; algo como: “ainda chegará o dia em que sentiremos falta do canalha honesto”. Na frase, o autor de “A Vida como Ela É…” faz uma alusão ao Palhares, um personagem que volta e meia aparece em suas crônicas. O Palhares era o homem que roubara um beijo da própria cunhada ao cruzar com ela no corredor. Também era o sujeito que se fingia de revolucionário e “ex-católico” para pegar mulher. Era um canalha. Mas era honesto — e aqui reside o aspecto que o torna tão interessante.
Na crônica “Caça-níqueis” (1968), Nelson descreve o encontro com Palhares no Antonio’s. O canalha tinha um embrulho debaixo do braço. Quando Nelson perguntou o que era, ele mostrou o retrato de Che Guevara e disse: “O Cristo!”. E então explicou, com toda a sua honestidade de canalha: “Este retrato é uma mina. Convido as meninas para ver o Guevara no meu apartamento. Tiro e queda. Vai por mim: — é o verdadeiro Cristo. Esse negócio de amar o próximo é uma laranja chupada. Não pinga mais nada”.
Palhares sempre agia assim: explicava, sem nenhum pudor, a sua canalhice. Ele não buscava uma justificativa, um bode expiatório que o fizesse “parecer bem” aos olhos da sociedade, que o transformasse numa vítima. Essa canalhice honesta, autodeclarada, transformou o personagem num favorito do público. Numa sociedade cínica, ela gera um fascínio que a dissimulação não é capaz de atingir. Só assim é possível explicar fenômenos como o “rouba, mas faz” ou a grande quantidade de cartas de amor recebidas por psicopatas confessos.
Hoje, com a canalhice protegida pelo rótulo incriticável de “vítima” — em prejuízo das vítimas reais —, somos, então, levados a sentir uma nostalgia dos Palhares de todos os tempos. Uma dessas figuras quase míticas foi, sem dúvida, Henry Miller, o talentoso “enfant terrible” da literatura americana. Que saudade de Henry Miller…
Praticamente todos os seus escritos são autobiográficos. Eles chamam atenção, sobretudo, pela falta de pudor. Miller não tinha receio de detalhar o seu egoísmo e a sua perversidade (e o melhor: fazia isso com grande habilidade literária). Não é à toa que muitos dos seus livros foram censurados durante anos. No início de “Trópico de Capricórnio” (1939), o autor relata um episódio de sua infância. Seu amigo Jack ficou de cama agonizando durante um ano. Embora no início Miller tenha ficado preocupado, acabou abandonando-o à sua sorte: “Bem, a princípio provavelmente me preocupei com ele, e talvez de vez em quando ligasse para sua casa para perguntar a seu respeito; mas depois de um ou dois meses, fiquei inteiramente insensível a seu sofrimento. Disse a mim mesmo que ele precisava morrer, e o quanto antes, e depois de pensar isso, agi de acordo: quer dizer, esqueci-o na hora, abandonei-o à sua sorte. Eu tinha apenas doze anos na época, e lembro-me que senti orgulho de minha decisão”. E depois de sua morte: “Estava morto e não tinha jeito. Eu sabia disso e me sentia contente. Não desperdicei minhas lágrimas com o fato. Não podia dizer se ele estava melhor ou pior, porque afinal ‘ele’ desaparecera. Ele se fora, levando consigo os sofrimentos que suportara e que sem querer infligira aos outros. Amém!, disse comigo mesmo e, com isso, estando ligeiramente histérico, soltei um sonoro peido — bem ao lado do caixão”.
No final do seu famoso “Trópico de Câncer” (1934), Miller relata, com a mesma deliciosa falta de pudor, como tomou para si o dinheiro que seu amigo diplomata havia pedido que ele entregasse para a sua ex-mulher antes de partir de volta para a América: “A menos que ele estivesse suficientemente louco para escrever-lhe uma carta explicando tudo, Ginette jamais precisaria saber do que acontecera. E mesmo que ficasse sabendo que ele lhe deixara uns 2.500 francos, não poderia prová-lo. Eu sempre poderia dizer que era imaginação dele. Um sujeito que, de tão louco, partira sem levar sequer um chapéu, é capaz de inventar 2.500 francos, ou seja, quanto for”.
Se Henry Miller vivesse no nosso virtuoso século 21, onde não há mais nenhum iníquo sequer, onde os “Palhares” estão em extinção, onde a sociedade é dividida em vítimas e algozes — e todos buscam se enquadrar na primeira categoria —, a sua canalhice honesta não seria tolerada. Que saudade de Henry Miller…