Decerto há alguma coisa de muito emblemático na Irlanda, terra de um cismaprofundo entre sua natureza exuberante e os conflitos religiosos que degringolaram numa guerra civil que se estendeu por três décadas entre 1968 e 1998. “Na Terra de Santos e Pecadores” apenas delineia The Troubles, ou “os problemas”, as hostilidades da Irlanda do Norte para com o Reino Unido de mais de há meio século, sem começo exato, mas pontuada pelo surgimento da Força Voluntária de Ulster, como a Irlanda do Norte também é conhecida, em 1966; a marcha em defesa dos direitos civis em 5 de outubro de 1968; a Batalha do Bogside, em 12 de agosto de 1969; e, por fim, o envio das tropas inglesas, em 14 de agosto de 1969.
Desse contexto de pólvora, sangue, batinas e fardas, emerge Finbar Murphy, um matador a soldo que junta dinheiro o bastante para aposentar-se e usufruir de uma velhice tranquila em Donegal, um vilarejo no extremo norte da Irlanda, cortado por falésias e planaltos verdejantes, depois de, a seu modo, fazer as pazes com Deus. Robert Lorenz, um colaborador regular de Clint Eastwood na produção de sucessos como “Sobre Meninos e Lobos” (2003), “Menina de Ouro” (2004) e “SniperAmericano” (2014), aplica boa parte do que aprendeu com o mestre em seu próprio filme, apostando em Liam Neeson para carregar a carranca de bom, mau e feio.
A despeito de o onipresente e incansável Eastwood estar em todas, essa é a impressão que se tem já nos primeiros minutos, ainda que Neeson seja capaz de dar um toque muito pessoal a Murphy, como sempre acaba acontecendo para ele, já uma grife nessas tramas de sujeitos diabolicamente imperscrutáveis, a exemplo do que se assiste em “Agente das Sombras” (2022), dirigido por Mark Williams, ou “Assassino Sem Rastro” (2022), de Martin Campbell.
O roteiro de Mark Michael McNally e Terry Loane retrocede a 1974, quando DoireannMcCann, uma terrorista do IRA, o Exército Republicano Irlandês, planeja um atentado contra uma autoridade local e acaba matando três crianças. Ao longo do enredo, Kerry Condon vai pintando sua vilã com as tintas de uma psicopata mais e mais repugnante, capaz de encobrir um crime abjeto envolvendo o irmão, Curtis June, de Desmond Eastwood (sem parentesco com Clint), e toda a gangue acha de se esconder, por óbvio, em Donegal.
O diretor elabora essas trapaças do destino de modo a colocar Murphy como um mestre de cerimônia, guiando o olhar da audiência para tudo o que se passa nos bastidores, embora ele mesmo transite pela narrativa sem uma ideia muito clara a respeito de como proceder com as pequenas e tenebrosas mudanças que sua nova terra experimenta. Ele presta um ou outro servicinho em seu velho campo de trabalho para Robert McQue, o xerife informal vivido por Colm Meaney, sequestrando e obrigando suas vítimas a abrirem a própria cova, no aprazível terreno que margeia um córrego, sobre a qual planta uma muda de pinheiro. Esse é o destino de Curtis June, e seu sumiço logo começa a ser investigado por Doireann, que não se tarda a responder à altura.
Resta um travo de decepção à medida que “Na Terra de Santos e Pecadores”, ao contrário do que sugere o título, prescinde da discussão de temas como transcendência, fé, pecado, livre-alvedrio e mudança de vida, todos de algum jeito convergindo para Murphy. O logro só não é maior porque a Irlanda do Norte, como Lorenz também ressalta no enunciado, aparece como uma figura cheia de vontades, roubando a cena numas tantas ocasiões, éden maldito que todos ali bem conhecem. O elenco de apoio segura os desvios sinuosos do diretor, e a presença de Ciarán Hinds na pele de Vincent O’Shea, o amigo policial do protagonista, boa-praça e incorruptível, ameniza maiores danos. Sem dúvida, este é um filme pretensioso, que morde muito mais do que pode engolir, mas pleno dos detalhes que nos mantêm firmes até a conclusão, que desperta os anjos e os demônios que há em cada um.
Filme: Na Terra de Santos e Pecadores
Direção: Robert Lorenz
Ano: 2023
Gêneros: Ação/Thriller/Faroeste
Nota: 8/10