Qualquer pessoa que, na escola, tenha prestado um pouquinho de atenção nas aulas de literatura brasileira sabe que Machado de Assis foi o nosso maior escritor. É um clichê e, como todo clichê, perde seu poder de convencimento de tão repetido. Pior que, obrigado a encarar “Dom Casmurro” ou “Esaú e Jacó” para se dar bem na prova, nosso estudante desiste nas primeiras páginas, invoca-se com a linguagem que julga difícil e parte logo para um resumo de internet.
Pobrezinho do estudante brasileiro.
Talvez devêssemos informá-lo que Machado de Assis é um sucesso fora das salas de aula, que ele está bombando justamente onde o professor de literatura menos espera encontrá-lo: no TikTok. Isso mesmo: Machado é um sucesso na rede de vídeos curtos. E mais, nos Estados Unidos! Aí o complexo de vira-lata late alto. Se deu no “New York Times”, só pode ser bom, né?
Todo mundo (pelo menos todo mundo que se interessa por literatura) ouvir falar, nas últimas semanas, que Machado de Assis está com tudo nos States. “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, um romance lançado no fim do Século 19, está em primeiro lugar entre os mais vendidos na prateleira de literatura latino-americana e caribenha da Amazon. Tudo graças à influenciadora Courtney Novak, que em seu perfil no TikTok encheu a bola do brasileiro: “Por que nunca me avisaram que este é o melhor livro do mundo?”, diz, apontando para seu exemplar, em inglês, do “Memórias”.
Exagero? Hum… Talvez não. Aproveitando a onda e dando uma mãozinha à galera que precisa ler Machado para a prova final, listamos cinco motivos pelos quais ele é, sim, o melhor. “The best”, se preferirem a língua do “New York Times”:
1 — Machado de Assis é o escritor brasileiro mais engraçado de todos os tempos
Mas calma. Nenhuma história dele é sobre uma turminha da pesada que apronta muitas confusões. Pelo contrário, Machado foi um mestre da sátira menipeia, gênero sério-cômico criado pelo filósofo e satirista grego Menipo de Gádara (Século 3 a.C.). Ri-se pela fina ironia, pela paródia, ri-se até pela melancolia das situações descritas nos romances e contos. Nas palavras que dirige ao leitor, logo na abertura de seu “Memórias póstumas de Brás Cubas”, Machado explica, usando a voz do personagem: “Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Esse é o espírito machadiano, que ele herdou dos britânicos Laurence Sterne (autor do imprescindível “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy”) e Jonathan Swift (do igualmente indispensável “As Viagens de Gulliver”), mas principalmente de Luciano de Samósata (Século 2 d.C.), retórico sírio que escreveu um “Diálogo do Mortos”, influência direta para o “Brás Cubas”. Esse humor não aparece apenas na obra madura de Machado. Em “Helena”, por exemplo, ainda de sua fase pré-realista, a ironia já está presente. Vejam como ridiculariza certo personagem: “O coronel Macedo tinha a particularidade de não ser coronel. Era major”. Assim ele ri da pomposidade e da obsessão dos brasileiros por títulos e posição social. Mas vá devagar. Machado não é politicamente correto. É de Brás Cubas a frase mais canalha da literatura brasileira, ao descobrir que a linda jovem por quem se apaixonara mancava levemente: “Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita?”
2 — Suas histórias vão do Século 19 a… 2024
Em seus romances, crônicas, contos, teatro e poesia, Machado retratou principalmente o Segundo Reinado, no fim do Século 19, mas muito do que mostrou ainda é verdade no novo milênio. No volume de contos “Papéis Avulsos”, reconhecemos tantas situações que não seria difícil atualizar as histórias para os dias de hoje. Em “O Alienista”, por exemplo, a chegada de um médico, o dr. Simão Bacamarte, à vila de Itaguaí primeiro desperta a admiração bovina típica do provinciano diante do homem cosmopolita. Quando o bom doutor mostra-se um tirano e confina boa parte da cidade em um manicômio, eclode a revolta quase muda: “— Déspota! violento! Golias! Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa”. É ou não um retrato do nosso país, até hoje impotente e deslumbrado pelas novidades? Em “Sereníssima República”, o narrador descreve uma sociedade de aranhas falantes. Enquanto tentam constituir sua república, os aracnídeos dividem-se em partidos: “Como eles são principalmente geômetras, é a geometria que os divide em política. Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; — outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos, — é o partido curvilíneo. Há ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado: as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto-curvilíneo; e, finalmente, uma quarta divisão política, o partido anti-reto-curvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma”. Segue-se o pleito, alguns sugerem fraude, mudam-se as regras, nada melhora. Mas lembrem-se, é uma república de aranhas, não a nossa, que é seríssima.
3 — Sim, a língua portuguesa ainda é importante e Machado foi nosso maior estilista
Há pouco tempo circulou um projeto de ‘atualizar’ Machado de Assis, tornando sua linguagem mais palatável ao público contemporâneo. Coisas como substituir palavras difíceis, simplificar a sintaxe etc. Felizmente desistiram da ideia (por enquanto) — seria como chamar um pintor de paredes para retocar a Mona Lisa. Se os trechos transcritos acima ainda não convenceram o leitor da grandiosidade do estilo machadiano, que tal este: “Mas ali, ao pé daquele coração juvenil e impaciente, cada minuto parecia, não direi um século, — seria abusar dos direitos do estilo, — mas uma hora, uma hora lhe pareceria, com certeza”? Nesse pedacinho de “A Mão e a Luva”, romance de 1874, Machado encontra uma maneira de rir dos exageros românticos — os minutos que viram séculos no coração juvenil — forçando uma antítese (um século / uma hora) que ressalta o ridículo do sentimentalismo. O trecho exala ironia, como se o narrador relutante buscasse um termo mais adequado a sua expressão (“mas uma hora, uma hora lhe pareceria, com certeza”). Vejam como Machado começava uma crônica datada de 9 de outubro de 1892: “Eis aí uma semana cheia. Projetos e projetos bancários, debates e debates financeiros, prisão de diretores de companhias, denúncia de outros, dois mil comerciantes marchando para o palácio Itamarati, a pé, debaixo d’água, processo Maria Antônia, fusão de bancos, alça rápida de câmbio, tudo isso grave, soturno, trágico ou simplesmente enfadonho”. Uma palavrinha — “enfadonho” — invalida toda a aparente seriedade da uma semana, que foi uma semana qualquer.
4 — É sobre a natureza humana. Machado desvendou uma parte dela
“A franqueza é a primeira virtude de um defunto”, narra Brás Cubas, o defunto autor de suas “Memórias Póstumas”. Só assim, morto, o personagem machadiano desfaz seus autoenganos, desmascara suas mentiras de vida inteira. Em sua obra, Machado de Assis sempre duvidou das filosofias redentoras, aquelas que preveem um futuro brilhante para a humanidade. Seu personagem Quincas Borba, criador do sistema que chamava de Humanitismo, é claramente uma sátira do Positivismo de Augusto Comte. Termina louco, como louco termina o dr. Simão Bacamarte, de “O Alienista”, internado por ordem própria em seu próprio hospício. Nos romances e contos do autor, as filosofias, ciências, ideais e progressos são apenas máscaras com que escondemos nossa miséria. Já sem nada dever ao mundo, Brás Cubas reflete: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Talvez seja pessimismo demais para o leitor, mas é fato que Machado desvendou nossas estratégias de autoengano.
5 — Lugar de fala? Machado tem
Homem branco privilegiado, tecendo beletrismos de seu gabinete confortável. Certa crítica contemporânea tenta descartar a literatura clássica pela caricatura de seus autores. Nada mais falso. Verdade que muitos artistas passaram bem, muitos nem tanto. “O Rio é uma pequena cidade suja, desconfortável e tumultuada. Divulgam os jornais, diariamente, notícias de tocaias, de lutas, entre negros foragidos.” Assim descreve Renard Pérez o Rio de Janeiro em que nasceu Machado de Assis, em 21 de junho de 1839. Mulato, filho de um pintor e dourador e de uma lavadeira. Embora desde cedo acolhido em casa fidalga, o mundo dos contrastes entre a miséria e a opulência foi aquele em que o escritor se formou — e dele tirou a matéria-prima de sua obra. As tocaias e lutas entre negros foragidos, por exemplo, estão retratadas no conto “Pai contra mãe”, em que um pai desesperado por ter que entregar seu filho a uma casa de órfãos vê na captura de uma escrava fugitiva, grávida, a solução para os seus problemas financeiros. No “Brás Cubas” há descrições cruas de como os negros eram tratados. Machado ainda teve a sensibilidade de registrar alguns costumes e falas dos negros do seu tempo, como neste trecho de “Esaú e Jacó”: “Lá dentro, a voz do caboclo velho ainda uma vez continuava a cantiga do sertão: Trepa-me neste coqueiro, / Bota-me os cocos abaixo. / Quebra coco, sinhá, / Lá no cocá, / Se te dá na cabeça, / Há de rachá; / Muito hei de me ri, / Muito hei de gostá, / Lelê, coco, naiá”.