Obra-prima de Stephen Daldry, que foi aplaudida de pé por 8 minutos no Festival de Cannes, está na Netflix Divulgação / The Weinstein Pictures

Obra-prima de Stephen Daldry, que foi aplaudida de pé por 8 minutos no Festival de Cannes, está na Netflix

Em certas circunstâncias, o passado se comporta como uma criatura que julgamos ter aprisionado em uma jaula dourada, nutrida e acarinhada, até que, enfim, revela sua verdadeira força. A ardente paixão de um jovem por uma mulher quase vinte anos mais velha possui todos os elementos para o fracasso, e ao adicionar a essa relação um abismo ideológico e moral intransponível, as chances de evitar uma catástrofe tornam-se mínimas. Este é um retrato das batalhas entre corpo e alma, necessidade e honra; “O Leitor” é, em sua essência, um estudo sobre ética e a importância das escolhas, que frequentemente se transformam em maldições incessantes para espíritos sensíveis.

 A direção precisa de Stephen Daldry transforma o romance homônimo do alemão Bernhard Schlink, publicado em 1995, em um drama de guerra cheio de ambiguidades, onde quase nada é o que parece e é arriscado classificar alguém como inocente ou culpado de imediato. Daldry, conhecido pela produção e direção de quatro episódios da aclamada série “The Crown”, que retrata os bastidores da família real britânica desde a coroação de Elizabeth II (1926-2022) até a morte de Diana de Gales (1961-1997), utiliza sua vasta experiência técnica para garantir que o público perceba estar diante de uma narrativa real de abjeção e engano, em um período histórico muito delicado.

Em 1995, Michael Berg acorda ao lado de uma mulher, provavelmente pela primeira e última vez, e se prepara para ir trabalhar, dizendo a ela que terá uma semana agitada e que não deve se preocupar se ele desaparecer. Este é o gatilho que o transporta para 1958, quando, aos quinze anos, chega a Berlim vindo do interior da Alemanha em um trem, faminto, doente e terrivelmente sozinho. Ele anda algumas quadras e para em um beco escuro e úmido, talvez para morrer. Hanna Schmitz passa por ele apressada, mas volta e o leva para sua casa, cuidando dele com uma dedicação quase patológica. Nenhum dos dois parece inclinado a um amor puro, muito menos ao platonismo, e não demora para que Michael comece a frequentar a cama de sua anfitriã, que o vê como um garoto e faz questão de expressar seu distanciamento.

Michael, interpretado por um atento David Kross na primeira fase, aceita a submissão a Hanna, que demonstra afeto a seu modo. Hanna promete ao novo hóspede todo o sexo que ele desejar, desde que antes ele leia para ela, e Kate Winslet capta perfeitamente a loucura e a sedução de sua personagem, ajudada pelos enquadramentos astutos do diretor, que a coloca nua em várias cenas, mas sempre respeitando a linha tênue entre o artístico e o vulgar. Um dia, ele encontra o apartamento dela vazio, sem um bilhete sequer, e oito anos depois, estudante de direito, ao atravessar os corredores de um tribunal, avista Hanna escoltada por um grupo de policiais, em um dos primeiros julgamentos dos colaboradores de Hitler.

O vaivém no tempo cronológico do roteiro de Schlink e David Hare, bem administrado por Daldry, retorna ao Michael adulto, interpretado de forma mesmerizante por Ralph Fiennes, mais amargurado do que nunca, sofrendo calado o maior trauma de sua vida, que surge na memória como um relâmpago, iluminando tudo por um instante para depois se extinguir. Ele pensa no abandono involuntário que infligiu àquela mulher, ao mesmo tempo que jamais perde de vista seus crimes, e disso, claro, surge a grande questão moral que ele precisa resolver consigo mesmo, sabendo que ninguém pode ajudá-lo.

O envolvimento com Rose Mather, a judia interpretada por Lena Olin, remete aos dias no apartamento de Hanna, mas com o sinal invertido, o que igualmente o atormenta. Se a anti-heroína de Winslet é a representação máxima da indignidade, ele não fica atrás. E quanto mais se afunda, mais se prende a isso.

“O Leitor” é uma análise bastante sutil que tenta explicar a força do acaso na vida humana, sem chegar a uma conclusão definitiva — e aí reside sua superioridade e beleza. Todos temos vergonhas a esconder, mas é necessário coragem para admiti-las, especialmente em tempos de moralidade artificial, onde tudo, absolutamente tudo, é motivo para condenações, justas ou não.


Filme: O Leitor
Direção: Stephen Daldry
Ano: 2008
Gêneros: Drama/Romance/Guerra
Nota: 9/10