É muito tentador mirarmos na biografia para falarmos do poeta. É muito tentador que olhemos para aquele que escreve em busca da compreensão da matéria escrita por uma subjetividade. Mas o caminho contrário pode parecer mais forte para firmarmos a respeito da qualidade de um poeta.
O poema lírico avança na contramão da biografia. A biografia vai do singular para o universal — Rousseau, nas “Confissões”, diz: “Somente eu. Eu sinto meu coração e conheço os homens” —, o lirismo expressa o sentido amplo da recordação no que ele não tem de intenso e singular. Temos uma dupla relação com o tempo, e ela insinua, para o lirismo, alternativas enunciativas completamente distintas em relação àquelas que regulam a autobiografia. Vale menos definir se a identidade passageira de um sujeito que concomitantemente se anula e se levanta é de temperamento autobiográfico ou ficcional, que abranger como ela alcança e se pronuncia no cerne de uma circunstância de linguagem.
Assim, falemos da poesia de Pio Vargas, poeta precocemente interrompido em uma produção que prometia ser das mais proeminentes do Brasil nos anos 1980 e início dos 90.
Antonio Candido, no livro “O Discurso e a Cidade”, quando analisa o poema “Louvação da tarde”, de Mário de Andrade, fala-nos de uma relação entre tradição e modernismo. Para ele, uma das razões pelas quais o poema de Mário é importante é pelo fato de, em um tom romântico, estabelecer as afirmações do modernismo, como se ali o movimento iniciado em 1922 estivesse tão seguro de si que pudesse se valer de formas “tradicionais” e “antigas” para a realização de seus projetos estéticos. Para falar de Pio Vargas, poeta da década de 1980 falecido no início dos anos 90, e de como podemos situá-lo num panorama de tradição da literatura brasileira, precisamos também recorrer a uma relação entre passado e presente, mas aqui nossos parâmetros serão outros. Não os mesmos de Candido, quando relaciona Mário de Andrade aos românticos, mas sim os que irão relacionar Pio Vargas aos modernistas, ou seja, um diálogo entre as tendências contemporâneas (à qual Pio está diretamente ligado, sendo comparado, por exemplo, a Paulo Leminski) e a tradição modernista da literatura brasileira.
A poesia de Pio Vargas é uma expressão genuína daquilo que Charles Baudelaire introduziu no ocidente: a temática, o modus operandi da construção poética da modernidade. O questionamento a respeito do comportamento do homem em um mundo no qual os valores são flutuantes, as realidades e convicções permanentemente mutantes, colocam-nos diante de um fazer poético que aparece mais como uma fotografia do que como uma pintura. É o registro do imediato, da reação substancial, sujeito lírico que transita, leve e profundamente, no espaço da subjetividade, sempre vítima de uma realidade na qual “tudo que é sólido desmancha no ar”, parafraseando o título do livro que o poeta Pio Vargas deixou, um dia antes de sua morte, aos cuidados de Edival Lourenço. No pacote que continha o livro, havia também um poema inacabado para ser completado por Lourenço, dando prosseguimento a um projeto que os dois desenvolviam de uma obra a quatro mãos. Pio sabia — e podemos afirmar isso não só pelos dados biográficos, mas pela força de sua poesia — muito bem a respeito da época em que vivia e, como todo grande artista, partindo do particular, atingiu os problemas universais do homem.
É quase irresistível não ir à biografia de Pio Vargas quando sobre ele se escreve. Trata-se de uma figura mitológica dentro de sua cidade, do seu estado. Um mito de juventude e genialidade que morreu aos 26 anos, quase com a fatídica idade dos 27, a mesma em que morreram Kurt Cobain, Janis Joplin e Jimi Hendrix, Amy Winehouse, e mais, se tivesse sido aos 27, seria pelo mesmo motivo dos ícones da música: overdose de drogas. Uma referência jovem da literatura que se pode comparar a Pio, pela sua precocidade e genialidade, é Victor Heringer, também falecido precocemente, este por suicídio. O ensaio que abre o volume que contém sua poesia completa começa com uma comparação mais refinada: Rimbaud (o que, estilisticamente, incorre em engano, na medida em que Rimbaud é um simbolista e a poesia de Pio em nada flerta com esta vertente poética). Mas o fato é: Pio, enquanto poeta, não carece de biografia. Sua obra, apesar de irregular, principalmente por causa do primeiro livro, que, segundo o próprio autor, não merecia ser lido, possui identidade, dicção própria, sistema, e mais, poucas vezes a morte de um artista deixa tão escandaloso o fato de se tratar de uma obra interrompida, e não terminada. Por isso é impossível não se pensar em Victor Heringer ao falarmos de Pio: dois jovens geniais silenciados por si mesmos cedo demais.
Difícil é, a partir do que temos de sua obra, não termos a certeza de que estava em uma linha ascendente. Seus poemas esparsos trazem versos de uma profundidade e sofisticação impressionantes. As conjecturas, tão mal vistas e nada bem-vindas em um texto de crítica literária, aqui pedem licença para afirmar que ele se tornaria um dos maiores poetas de Goiás, e um poeta de eco no cenário nacional, não só porque era bom, mas porque era engajado, uma figura atuante no cenário cultural, espécie de Ademir Luiz dos anos 1980 e início dos 90. Para além de sua obra, trazia uma personalidade sedutora, capaz de arregimentar a atenção dos que o conheciam, pelo humor natural e rápido, e, pelo que se diz, pela simplicidade e despretensão no trato. Ao menos assim reza a lenda.
Os poemas de Pio vivem sem a sua vida agitada, trágica e prematuramente interrompida. Cabe e vale situarmos a sua obra numa tradição literária, que ele compreendia, conhecia e com a qual dialogava de igual para igual, de poeta para poeta. Não era, como alguns pensam, artista ingênuo, pouco lido, instintivo. E não são os dados biográficos que dizem isso, mas os seus escritos, que diluem o aprendizado de leitor na artesania de seus versos. Junto à referência francesa de Baudelaire, vejo-o muito próximo de outro poeta, este um brasileiro maravilhoso que, sem ser pomposo ou rebuscado, foi extremamente sofisticado, tal como é Pio: Manuel Bandeira.
Difícil ler Pio Vargas sem se lembrar do título de um dos livros mais felizes de crítica literária já escritos no Brasil, “Humildade, Paixão e Morte”, de Davi Arrigucci Júnior, no qual estabelece os três eixos mais significativos para se compreender o sistema no qual se organiza a poesia de Manuel Bandeira. A humildade está tanto na despretensão da linguagem como nos temas humanos, do chão da realidade que nos rodeia, toca e comove; a paixão está na vida irrealizável, que poderia ter sido e que não foi, mas sempre amada, experimentada com fulgor, nem que fosse na imaginação colorida de Pasárgada; e a morte, presença constante, temática predileta, exaustivamente estudada e experimentada de todos os modos em muitos e milhares de versos que perfazem o conjunto de sua obra. Biografismos ao gosto de Saint Beuve à parte, é fácil saber a razão pela qual, tanto em Bandeira quanto em Pio, a morte foi um tema repetido, central.
Mais Bandeira que qualquer outro para mim é a senda interpretativa de Pio. Se Barthes está certo ao dizer que a literatura não fala da vida, mas sim da própria literatura, diria que Pio fala demais em Bandeira, um pouco em Drummond, e apenas murmura sobre João Cabral de Melo Neto. Seu “Anatomia do Gesto” é uma tentativa feliz de falar com Cabral, mas, felizmente — pois mesmo sem atingir seu suposto objetivo fez um livro sólido e forte —, não consegue estabelecer esse diálogo. Fica entre Drummond e Bandeira, seja no lirismo concentrado e pessoal do segundo, ou no negativismo ativo do primeiro, negativismo a respeito do qual vale a pena saber mais lendo o teórico Hugo Friedrich, em “A Estrutura da Lírica Moderna”.
Cabral se queria o antilírico, poeta substantivo, no qual a emoção deveria vir de um processo racional de percepção da forma. Desejava o poeta de “Educação pela pedra” praticamente a morte da subjetividade do sujeito lírico, subjetividade que grita em Pio, Bandeira e Drummond.
Diz Cabral em seu artigo “Da função moderna da poesia”, que o fator unificador dela é a pesquisa formal, que corresponderia ao desejo do poeta de encontrar uma nova linguagem capaz de expressar mais adequadamente ou a sua visão pessoal, ou a complexidade da vida moderna. Em “Poesia e composição” — outro texto de Cabral sobre o fazer poético — ele reivindica que a palavra e o debate sobre composição só podem se dar entre aqueles que procuram a poesia, e não entre aqueles que a encontram. A procura se dá pelo trabalho árduo, cheio de fracassos antes que se chegue até o seu fim. O encontro se dá pelo acaso, sorte, reflexo de vivências que terminam na poesia. Essa objetividade, esse antilirismo, anti-confessionalismo, não encontram eco em Pio. Percebo nele algo de Bandeira quando noto em seus versos um tom altamente confessional, sujeito lírico corajoso, de uma exposição clara de suas idiossincrasias. Complicado lutar contra a tentação de usar as palavras de Mário de Andrade, escritas em seu livro “Aspectos da Literatura Brasileira”, no qual fala de “Libertinagem”, obra fundamental da poesia bandeiriana. O que Mário diz sobre “Libertinagem” cabe para Pio, e está diametralmente oposto ao que pensa Cabral.
Vejamos: “Libertinagem é um livro de cristalização. Não da poesia de Manuel Bandeira, pois que este livro confirma a grandeza dum dos nossos maiores poetas, mas da psicologia dele. É o livro mais indivíduo Manuel Bandeira de quantos o poeta já publicou. Aliás, também nunca ele atingiu com tanta nitidez seus ideais estéticos, como na confissão…”
O que acaba afastando Drummond de Pio é também o que o afasta de Bandeira.
Para Antonio Candido, em livro intitulado “Vários Escritos”, falta naturalidade na poesia de Drummond, como se fosse ela mais mental do que emocional, diferente do que acontece com o autor de “Libertinagem”, especialmente nos temas banais, do cotidiano.
Diz Candido, falando de Bandeira com relação a Drummond: “O modo espontâneo com que este fala de si, dos seus hábitos, amores, família, amigos, transformando qualquer assunto em poesia pelo simples fato de tocá-lo, talvez fosse uma aspiração profunda de Drummond, para quem o ‘eu’ é uma espécie de pecado poético inevitável, em que precisa incorrer para criar, mas que o horroriza à medida que o atrai.”
Drummond convida Pio pelas temáticas, Bandeira pela forma, mesmo que a simplicidade de Pio não deságue tantas vezes em um “non sense” para o qual caminha demasiado a poesia de Bandeira, e nem no que Davi Arrigucci, em “Enigma e Comentário”, chama do paradoxo existente entre simplicidade e “sublime oculto” da poesia bandeiriana.
Vejamos alguns exemplos de criação do sujeito lírico vargueano e como podemos perceber nesses versos as hipóteses acima discutidas.
Observemos “vaga litúrgica”, de seu último e póstumo livro, “Os Novelos do Acaso”:
o volume da chuva
é que decifra o dilúvio
como no corpo eflúvio
é âmbar a dúvida
a porta que mais vence
é a que aberta permanece
e o corpo que mais sente
é nem sempre o que adoece.
Que morte é natural
senão a que é sem leito
se nem só pelo sinal
traduz-se o que foi feito (?)
o que por dentro queima
e teima em prosseguir
o fôlego-fátuo que anuncia
cenas do óbito a seguir
Vai mais longe quem divaga
além de si aquém do se
a certeza que mais propaga
é a de quem menos disse
nenhum lugar pleno existe
a menos que a invenção o faça
:o perdão é de quem insiste
no pecado e não na graça.
Trata-se de um conjunto de três poemas nos quais o tom peremptório, característico das liturgias, apresenta uma série de aforismos poéticos nos quais as percepções empíricas servem de respostas a questionamentos aparentemente físicos, mas que denotam o mergulho no interior da condição humana. Sempre imagens com um negativismo não inclinado ao desânimo ou à entrega, mas carregado de um poder semântico mais reconstitutivo do que consolador.
Observemos que nos primeiros versos há a afirmação de que “o volume da chuva / é o que decifra o dilúvio”. Desta observação empírica abstraímos que o volume da chuva corresponde à ação e o dilúvio ao resultado dela. A escolha da palavra dilúvio e do signo chuva dialoga com o título do poema, já que são imagens e temáticas bíblicas. Dilúvio, grande catástrofe bíblica que assolou a terra e suas espécies, mas não para um extermínio e sim para um recomeço. Por mais que a imagem seja trágica, o seu resultado será o de perspectiva, o de possibilidades outras, mas que não ingênuos porque não desfazem de nossa condição humana irreparável e sem solução, já que os próximos versos nos colocam diante do “Âmbar” de nossas dúvidas perenes O tom espiritual, “litúrgico”, ironicamente litúrgico, é reforçado nos últimos versos do primeiro poema, “e o corpo que mais sente / é nem sempre o que adoece”. A dualidade desse corpo que mais sofre nos conduz à existência de duas possibilidades de um mesmo sujeito, na existência de dois lugares de operação da dor e do sofrimento. Corpo e alma? O tom litúrgico, religioso, talvez nos dê possibilidade de afirmar que, se é saudável o corpo, às vezes é enferma a alma.
O tema da morte aparece em uma máxima que nos deixa de frente com o terrível e inevitável, e a inaplicabilidade de sua ocorrência, numa experiência que beira mais uma vez o “non sense” bandeiriano. Na estrofe seguinte do segundo poema temos a condição humana vista sob a ótica negativa da vida estimulada pelas angústias de quem observa e se pergunta. Vemos também um interessante jogo de palavras: o fogo-fátuo torna-se fôlego-fátuo, ou seja, passageiro, fugaz, sempre a terminar com a morte daquele que, inutilmente, eternamente, consome a si mesmo com o que “por dentro queima”: o homem.
No terceiro poema seus versos ganham ar de sofisticação linguística: “vai mais longe quem divaga / além de si aquém do se”. Avança mais quem sonha, imagina para além do mesquinho, banal, para quem avança em Pasárgadas criadas pela imaginação, por Teresas, alumbramentos, assim, vai-se além de si, da constituição pequena da existência.
Como disse Ferreira Gullar, a arte existe porque a vida não basta, não bastando, necessário é ir além de si e aquém do se. O “se” aqui aparece em sua indeterminação, já que gramaticalmente pode ser conjunção subordinativa integrante ou condicional, partícula expletiva ou de realce, parte integrante de um verbo, partícula apassivadora, índice de indeterminação do sujeito ou pronome reflexivo. Tendo um negativismo de reação, de recusa e aceitação da condição humana, esse “se” refere-se mais ao aspecto de conjunção subordinativa condicional, aquele “se” que nos persegue em frases de arrependimento, de lamento, “se eu não tivesse ido, sentido, pensado, nascido”. A tensão da interpretação, a indeterminação, a dúvida peremptória migra para o terreno da linguagem, casando-se, como gostaria José Guilherme Merquior em “Razão do Poema”, forma e conteúdo.
Hugo Friedrich nos diz, em “Estrutura da Lírica Moderna”, que essa “tensão dissonante […] exprime-se […] com uma aguda intelectualidade, [misturando] simplicidade da exposição com a complexidade daquilo que é expresso, o arredondamento linguístico com a inextricabilidade do conteúdo, a precisão com a absurdidade, a tenuidade do motivo com o mais impetuoso movimento estilístico. São, em parte, tensões formais e querem, frequentemente, ser entendidas somente como tais. Entretanto, elas aparecem também nos conteúdos”. O poema termina com uma afirmação nada litúrgica, muito niilista: “o perdão é de quem insiste / no pecado e não na graça”.
Para encerrar, “manifesto”. Não faz parte de uma obra. Na organização de sua poesia completa está nos “Poemas avulsos”. Aqui temos uma reinvenção do desconforto bandeiriano com relação a tudo aquilo contra o que lutavam os modernistas. A referência é escandalosa.
Vejamos primeiro trechos dos versos de “Poética”, de Manuel Bandeira, que está contido em “Libertinagem”:
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado (…)
Não quero mais saber
do lirismo que não é libertação.
Vejamos agora “manifesto”, de Pio Vargas:
abaixo a poesia
pão com manteiga
café com leite
chá com torradas
agora importa-me
a poesia que abuse do verso:
o anti-modelo
que desfila roupa rasgada.
O verso avesso
no varal do meu berço.
A relação entre as duas vozes líricas é óbvia. Mas esse poema revela outro aspecto, o puramente confessional, a ponto de não estar sequer ligado a um projeto intelectual, como no caso de Bandeira. Essa reivindicação de Vargas é particular. Sendo um leitor e conhecedor da tradição, sabia ele que as conquistas no que diziam respeito ao verso livre já tinham sido todas feitas. Não fazia sentido, nesse momento, levantar a bandeira do arrojo, da liberdade, da falta de modelos clássicos. Esse desapego, esse “chamamento” não são coletivos, mas sim particular, confessional, mais até que no caso de Bandeira.
A poesia de Pio Vargas precisa ser lida, trazida à baila para que reboe em nossa memória coletiva, para nos trazer uma espécie de senso de pertencimento. Precisa ser dita nas salas de aula de nossas estéreis escolas, de nossas altivas (?) universidades, pois todos os requisitos para isso ela tem: lugar na tradição, força estética, capacidade de despertar em nós o estranhamento e o entendimento do humano que toda obra de arte pode e deve dar.