Faz-me falta fazer o que faço bem. Certamente esse é o drama mais absoluto de ter uma patologia como a ataxia de Machado-Joseph.
Em uma infinitude de coisas que fazemos mal, há algumas que fazemos bem. Eu fui muito bem formado para ser professor. No quesito reprodução social, dei checklist nesse aspecto. Minha avó, minha mãe, meu pai, minha tia, meu irmão foram professores, meu pai ainda é. Não fui bom aluno antes do mestrado, mas fui um aluno ligado, e não era um mau aluno. E assim fui me formando. Lia de tudo, mas só agora gosto de ciências naturais.
Apesar de confessional, não pretendo soar como lamentoso. Acho que foi o Jô Soares quem dissse quando perguntado se tinha medo de morrer que lembrou: “Meu amigo Chico Anysio dizia que não tinha medo de morrer, mas que tinha pena.” Esse é uma queixa lamentosa de muita valia.
Vivi muitas coisas, e pretendo viver tantas outras. Não vou apresentar meu currículo vitae, porque vai ser chato e não estou procurando emprego; mas que o governo Lula 3 — a missão — devia ser mais razoável no diálogo e tratar com dignidade os professores-cientistas e trabalhadores das instituições federais de ensino em greve, isso devia. O que me alegra mesmo é ministrar aulas. E, aqui vale um lamento, a doença dificulta de tal forma minha capacidade laboral, que logo serei um professor sem sala de aula. Esse meu período de afastamento deve ser também para me acostumar com isso.
Minha irmã, também atáxica, certa vez, numa prosa de fim de tarde me confessou uma peróla. Eu disse (meio choroso): “Cejana, sabe do que eu mais sinto saudade? De ser professor, não, melhor, de dar aula, sinto falta do meu trabalho, da sala de aula.” E ela: “Disso eu não sinto falta, viu!? Ninguém merece aquele trabalho.” Não vou dizer qual a ocupação profissional dela, senão as mães ficariam horrorizadas. Ocupação deveras importante e séria.
Contei ao Manoel Gustavo que o nosso amigo Ademir Luiz me convidou para fazer uma apresentação de gala nas palestras da UBE-GO (União Brasileira dos Escritores-seção Góias) e pediu para que eu juntasse minhas duas melhores obras — a minha relação com a produção de fanzine — o “Demo Cognitio” — e a minha leitura de Machado de Assis, e nos alegramos juntos. Aí o Manoel me contou que ele e o Ademir se encontraram na instituição em que eles trabalham, o Ademir lhe disse que soube da minha patologia e que queria me encontrar, me convidar para algo, ao que o Manoel disse: “O Marcelo está bem, com as faculdades preservadas, o convide para algo que você o convidaria antes de saber da doença, para algo que vocês dois gostem.” E assim foi. Na semana seguinte, fui convidado pela professora e escritora, Maria de Fátima, para, apesar das dificuldades, agora só falar de Machado de Assis, para as turmas de mestrado e doutorado das Letras da PUC-GO.
Senti a sala de aula novamente. Foi bom, como no geral sempre foi. Quase nunca pensava premeditadamente com entusiasmo quando calculava rota/roteiro das aulas do dia seguinte, mas invariavelmente, apesar das oscilações do ensino, sentia satisfação pelas aulas, pelo que disse, pelos acertos e erros. Meu amigo Manoel dizia quando nos tornamos, os dois, professores concursado efetivos da universidade, que a gente tinha se dado bem, pois: “A gente lê livros e fala sobre eles. E ainda recebe por isso! Se não tivese dado certo leríamos, falaríamos menos sobre isso e de graça.” Ele tem razão. Mas não totalmente, porque há muitas e muitas atividades relacionadas à vida do professor que são difíceis de suportar, mil vezes chatas, que já sabíamos e vivemos.
Inclusive por ter tanto professor por perto, eu não “queria” ser professor. Sempre fui razóavel em história, meu pai é um professor de História bastante conhecido na capital dos goyazes, eu via as agruras e não queria ser comparado a ele. Mas fui, claro. O que é uma honra. Vou abrir dois paragráfos para contar dois desses episódios.
No meu primeiro ano corrente de sala de aula, em 2007, a coordenadora da escola tinha destinado a tarefa de espiãs para duas alunas, que foram lá, ao final da aula contar o que tinha rolado e se tinham gostado da minha aula, de mim, já que muito novo e substituindo um professor querido e exemplar. E elas disseram que gostaram muito, que fiz uma roda-viva e que falei de um tal de Wittgenstein quando perguntado sobre Deus. A coordenadora, vim a saber depois, que eu amava, disse: “Que bom. O Marcelo sempre leu muito e se comunica bem. Mas vou dizer, se vocês gostaram dele, imaginem se tivessem tido aula com o pai dele. O Panta é o melhor.”
Fui fazendo bem aquilo de dar aulas, nisso fui trabalhar em outra escola também – pois aulas de sociologia são poucas e um escola só não dá para completar carga horária. Numa confraternização, o professor de Física que tinha sido aluno do meu pai e bebido além da conta quando soube da minha filiação, logo afirmou: “Cara, para de dar aula. Desiste, seu pai é o melhor professsor que tive. Você nunca vai chegar aos pés dele.” E eu: “Isso é uma honra pra mim. Eu sou eu, meu pai é meu pai.”
Retomando, nessa de não “querer” ser professor, o Herberth, outro amigo, relapso com a vida escolar, como eu, disse: “Você gosta de índio, né? Faz Ciências Sociais, você pode ser pesquisador e você gosta de história, política, filosofia, literatura, então é isso. E não precisa estudar muito.” Ledo engano. Estudamos muito, o ideal de ser pesquisador como o presidente de então, Fernando Henrique Cardoso, apesar de gostarmos mais do operário Lula, não rolou exatamente, e nenhuma das figuras em destaque traziam nossos sonhos românticos, coisa de jovens, hoje os problemas são outros. Como conversava com a minha fisioterapeuta esses dias: nossos pais, de origem classe média-bem-baixa, não impunham algum curso superior, pois só de estarmos fazendo curso superior e não rodando a bolsinha por aí, já era bom negócio. Nisso fui calouro do Herberth e fizemos Ciências Sociais e não pesquisamos os povos indígenas, apesar da deferência.
Recentemente, um romance num almoço de domingo pediu que eu falasse para ela sobre pós-estruturalismo. Empolguei e deitei a falação sobre o pensamento francês, ao ponto de esquecer as fofocas, que são sempre mais importantes, e fui exigido por isso depois. É que achei que fosse minha última aula!
Tornei-me professor, e entendi que o pesquisador se alimenta da troca que a sala de aula dá, e a sala de aula é alimentada pela pesquisa. Essa dissociação é uma das facetas da tragédia educacional brasileira.
Além das dores severas, da dificuladade motora, do desequilíbrio, da inexatidão gestual, da fala trôpega e arrastada, os governos, como bons balcões de negócios da burguesia — como dizia o velho barbudo, colocaram a granada no bolso do trabalhador, e a hereditariedade colocou outra no meu bolso. Que pena eu não poder ministrar aulas.