O Museu de Arte de São Paulo está com uma exposição até o dia 13 de outubro que merece uma visita — Lucien Freud Corpos e Rostos. Não chega a ser rica, o que há mais são gravuras, mas há também algo até mais interessante do que suas pinturas, as fotografias de David Dawson. São registros do ateliê de Freud, que funcionam como reveladoras, denunciadoras até, do espírito do pintor. Ou seria da alma do modelo? Explico-me.
As fotos mostram o modelo ao lado da pintura já realizada. E em todas elas o modelo é mais bonito e/ou mais sereno e feliz do que a pintura mostra. A moça que posa nua a maioria das vezes, por exemplo, é bonita, simpática, de traços delicados. Mas retratada por Freud feia, rude, com traços grosseiros. Seus pés, por exemplo. Pequenos, harmoniosos, nada têm a ver com as pinceladas freudianas. A rainha Elizabeth II sorri para a câmera, transmitindo uma serenidade que contrasta bastante com seu retrato sério, severo, ao lado.
Será que Lucien, neto de Sigmund, tem o dom de enxergar a verdadeira alma das pessoas? Ser retratado por ele equivaleria a entrar no quarto tarkovskiano de Stalker? (Um quarto escondido no meio do nada, a “Zona”, cercado de mistérios e perigos potenciais, que tem o poder de conceder o desejo mais íntimo de quem nele entrar. Um dia alguém pediu pela saúde do irmão moribundo. O irmão não sarou, morreu, mas a pessoa que pediu por ele ficou rica, já que era este seu verdadeiro desejo, e não a saúde do irmão. O quarto enxergou isso. Concedeu isso). Mas então, de acordo com Lucien, somos todos rudes, amargurados, brutos, enfim… feios. Exatamente. Faz todo sentido, pois, não querer se ver retratado, pelo mesmo motivo que o escritor e o cientista, depois de atravessarem longa e extenuante jornada até chegar ao quarto da Zona, decidiram não entrar.
Somos todos como Freud nos vê. Nossa natureza animal bruta, no sentido eticamente neutro, é feia, no sentido esteticamente ético. Ou seria eticamente estético?
Até 3 de novembro também está acontecendo a FotoBienalMasp. Muito bacana. Particularmente as paisagens de Marcelo Tinoco. É preciso chegar perto (com bons óculos, caso seja présbita) pra checar que não se trata de pinturas. É um Gerhard Richter às avessas. Os retratos deste parecem fotos. Betty (de frente e de costas), Leitora, Morte, Ema (Nu na escada), Tigre, Esquadrão Mustang, todos surpreendem com a informação de que são óleo sobre tela. As paisagens coloridas de Tinoco, de diferentes partes do mundo, com pessoas em atividades ao ar livre, por sua vez, são ‘verdadeiras’ pinturas.
Por fim, mas não menos interessante, há o acervo. Já não curto tanto mais As Tentações de Santo Antão, de Bosch, ao qual dedicava várias horas sempre que ia ao MASP. Desta vez detive-me mais num Vuillard, A princesa Bibesco”. Quanto a esculturas, que não sei por que motivo nunca me atraíram (nem Rodin, antes que perguntem), o MASP é razoavelmente servido delas, plantadas no subsolo, que acaba sendo a última ala visitada.
PS: Quem gostou do “Stalker”, de Tarkovski deverá gostar de “Zona: A Book About a Film About a Journey to a Room”. A propósito, numa dessas listas estúpidas que costumam sair aqui na Bula, Tarkovski figurou entre “filmes para morrer antes de ver”. Como a morte misericordiosa de anencéfalos passou a ser permitida pelo STF, as pessoas que incluíram o diretor russo na lista já podem ser sacrificadas.
PS2: Economizei quarenta reais, o preço do livro da exposição de Lucien Freud na livraria do MASP por conta de uma estratégia “não fazemos muita questão” dessa loja.