A combinação de drama e suspense que Martin Scorsese traz em “Ilha do Medo” é quase tão envolvente quanto a narrativa de Dennis Lehane no livro homônimo, publicado em 2003. Scorsese, um dos cineastas mais aclamados de Hollywood, especialmente nesses gêneros, consegue traduzir com maestria o espírito do livro para o filme, mantendo o mistério e a tensão que Lehane imprimiu em sua obra. Ele aborda como poucos o lado obscuro do ser humano, dissipando com habilidade as densas névoas que encobrem o que parece ser evidente. Neste filme, Scorsese explora a eterna batalha que travamos contra nossa própria natureza, buscando entender o mecanismo que nos permite continuar apesar da abjeção e da loucura que nos espreitam. Essa luta nos apresenta um adversário íntimo e desconhecido, que nos ataca nos momentos mais inesperados.
O título do filme remete a um lugar sombrio, o apelido pouco atraente das ilhas Boston Harbor, um arquipélago rochoso e isolado, que evoca imediatamente a ideia de punição eterna. Essa atmosfera de danação e sacrifício é estabelecida logo na abertura do filme, quando o roteiro de Laeta Kalogridis apresenta um preso visivelmente desanimado, passando um rastelo por um gramado incrivelmente verde, uma das poucas imagens que trazem algum alívio visual em meio aos 138 minutos de tensão, destacada pela fotografia precisa de Robert Richardson.
Nesta paisagem desoladora, encontramos o delegado Edward “Teddy” Daniels, interpretado por Leonardo DiCaprio, e seu parceiro Chuck Aulen, vivido por Mark Ruffalo. Eles são acompanhados pelo enigmático Dr. John Cawley, interpretado por Ben Kingsley, enquanto se dirigem a um dos alojamentos do imenso complexo de celas. A trama é ambientada em 1954, apenas nove anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, e os traumas de Daniels do front de batalha ainda são palpáveis, levantando dúvidas sobre sua capacidade de lidar com a missão que lhe foi atribuída.
A história ganha uma dimensão pessoal quando Rachel Solando, uma assassina dos próprios filhos interpretada por Emily Mortimer, ressurge, trazendo à tona lembranças dolorosas do passado de Daniels. Rachel, com seu comportamento errático, é também interpretada por Patricia Clarkson, e seus segredos são essenciais para a trama. A possibilidade de que sua fuga tenha sido facilitada por outros prisioneiros e guardas mantém o público atento a cada movimento de Mortimer e Clarkson. Paralelamente, a personagem Dolores, interpretada por Michelle Williams, a esposa de Daniels, adiciona camadas de complexidade à narrativa.
Scorsese conduz o filme por um terreno de incertezas, desvendando gradualmente o enigma que cerca Rachel. A revelação do verdadeiro significado dos personagens e seus papéis é um dos pontos altos do filme. Em uma cena memorável, Kingsley usa uma lousa para expor anagramas dos nomes dos personagens, elucidando a conexão entre Daniels, Aulen, Rachel e Dolores. Essa reviravolta revela a natureza ilusória da narrativa, fundindo realidade e delírio de maneira quase inseparável, mas enganosamente convincente.
“Ilha do Medo”, na Netflix, é um exemplo brilhante de como Scorsese manipula as expectativas do público, criando uma experiência cinematográfica que desafia a percepção e mantém o suspense até o final. O filme não apenas honra o livro de Lehane, mas também se destaca como uma obra de arte visual e narrativa, onde cada detalhe contribui para a construção de um thriller psicológico memorável.
Filme: Ilha do Medo
Direção: Martin Scorsese
Ano: 2010
Gêneros: Thriller/Mistério/Drama
Nota: 9/10