Gente chata vai pagar mais imposto Freepik

Gente chata vai pagar mais imposto

Tirei uns dias de férias. Escolhi para descanso uma famosa estância hidrotermal localizada perto da cidade onde moro. A ideia era aproveitar o clima ameno dessa época do ano, com temperaturas mínimas atingindo a casa dos 12 graus Celsius, e ficar mergulhado nas relaxantes piscinas de água quente até o corpo ficar murcho que nem maracujá de gaveta. O lugar era incrível, paradisíaco, mas, lamentavelmente, inacessível para a maior parte dos trabalhadores brasileiros. Não restava dúvida de que eu era um cidadão privilegiado.  

Certo dia, enquanto tomava um chopinho dentro de uma das piscinas do complexo, eu apreciava o show de um músico cujo nome, infelizmente, não me recordo. Se me lembrasse, eu não diria, a fim de não lhe prejudicar de alguma forma. Quando cheguei ao local, vestindo uma clássica sunga lilás do século passado, a apresentação já havia começado. Era a happy hour e o rapazola fazia a sua performance ao velho estilo voz e violão, tipo som de barzinho. Cantava e tocava muito bem o danado. Fiquei sinceramente impressionado. O repertório casava com o meu gosto musical, quer dizer, música popular brasileira da melhor qualidade, pop-rock e uma deliciosa sequência de inesquecíveis hits internacionais dos anos 1970… 1980…1990…

Depois de cantar “Have you ever seen the rain”, do Creedence, ele interrompeu a apresentação e desabafou com o público que lotava o parque aquático. Primeiramente, pediu desculpas à plateia por ter se descontrolado e por ter batido boca com um inconveniente hóspede do hotel. Fiquei boiando com a história. Uma jovenzinha histérica, de corpo escultural talhado à mão, contou-me que a treta tinha sucedido assim: o rapaz mal terminara de cantarolar os últimos versos de “Quando o sol bater na janela do seu quarto”, da Legião Urbana, quando um banhista que estava sentado no deck aproximou-se do palco, de forma bastante exaltada, intempestiva, esbravejando que o som estava alto demais e exigindo que fosse baixado.

“Foi como se eu tomasse uma ducha de água fria”, lamentou o cantor com a voz embargada. Conforme apurei com um dos bebuns ao meu lado, que certamente urinava de forma velada dentro da piscina quentinha, o homem tinha extrapolado, ou seja, nas suas palavras, “tinha pulado o corguinho com cadeira-de-rodas”. Indignado com a atitude inesperada do estranho, o cantor não se fez de rogado e perguntou pelo microfone como é que ele conseguia se comportar de maneira tão indelicada estando num local idílico como aquele; e se não podia ter feito a sua reivindicação de forma mais polida ou, quem sabe, ter se sentado um pouco mais distante da caixa de som ou, ainda, em última instância, ter caído fora.

Furioso com a interpelação do músico, o encrenqueiro apontou o dedo em riste na direção do palco, esbraveou impropérios, catou os petrechos, puxou a mulher pelo braço e vazou sob os apupos da turba. O cantor respirou fundo e destrinchou uma saraivada de canções animadas que levantou ainda mais o astral da plateia. Por fim, antes da quarta saideira, confessou que era uma pessoa feliz, que adorava a profissão e que sustentava a família única e exclusivamente com o ofício de cantor.

Repetiu que não lhe entrava na cabeça o fato de um ser humano agir de forma assim tão nervosa e desproporcional, estando em férias num local bucólico, encantador e paradisíaco; um resort espetacular cujas piscinas rústicas, confeccionadas com pedra e com cascalho, eram preenchidas por fontes naturais de água quente que brotavam do subsolo. Os banhistas aplaudiram a manifestação do artista e o ovacionaram como desagravo. Comovido com o apoio, concluiu a sua fala: “Apesar dos altos e baixos, dos tombos que a gente leva, a vida é maravilhosa e merece ser vivida com mais alegria. Sentir-se melancólico, pessimista, é coisa que acontece com todo mundo, eu entendo. Agora, permitir-se contagiar pela arrogância, pela truculência e pelo mau humor, não faz sentido, ainda mais, aqui, no meio dessa natureza exuberante”.

O mundo anda mais esquisito do que nunca. Os Titãs estavam certos: os bichos escrotos saíram dos esgotos. Não sei se, passado o desagradável entrevero, aquele jovem artista voltará a demonstrar o seu talento no palco do resort de águas quentes e cristalinas. O mundo corporativo não costuma perdoar os deslizes de sensibilidade dos seus colaboradores. Se depender do apoio sincero e festivo dos hóspedes, o show deve continuar. Assim como a busca incansável pela felicidade que alguns não admitem. Que se danem. Todo castigo para gente chata ainda será pouco.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.