“The eyes, chico. They never lie.”

“The eyes, chico. They never lie.”

Nelson Rodrigues já dizia: “Certas coisas, certas verdades, exigem um canalha para dizê-las”. É por isso que se pode, sem nenhum constrangimento, aprender — e muito — com figuras um tanto questionáveis. É o caso do personagem Tony Montana, vivenciado por Al Pacino em “Scarface” (1983). Numa cena clássica em que o mafioso cubano aparece dirigindo um Cadillac 1963 enquanto conversa com “Manny” Ribera, seu braço direito, ele diz: “The eyes, chico. They never lie”.

A frase — dita com uma “graça” de canalha — faz referência aos olhos da personagem Elvira Hancock, interpretada por Michelle Pfeiffer, que havia acabado de lhe dar um fora. No início do filme, ela era casada com o chefão da máfia de Miami. Algum tempo depois, Tony Montana assassina o mafioso e fica com a mulher, que parece, pelo menos a princípio, sentir alguma atração por ele. Portanto, ele consegue provar que tinha razão. Os olhos realmente nunca mentem.

Mesmo sendo um psicopata sanguinário obcecado pela irmã (ou talvez precisamente por isso), uma verdade saiu pela sua boca de forma tão livre de pudor que transformou o diálogo num clássico. A referência aos olhos de Michelle Pfeiffer tornou a frase ainda mais antológica. Nos anos 80, ela era uma daquelas belezas que surgem de mil em mil anos para constranger a humanidade a parar de fingir que o “belo” é um conceito relativo.

Usando outras palavras, Edgar Allan Poe escreveu que os olhos são “a janela da alma”. Nos anos 60, George Ohsawa, divulgador da “macrobiótica”, chegou ao extremo de predizer a morte de famosos — como John F. Kennedy — com base na configuração de seus olhos. Ele foi o responsável por popularizar no ocidente a ideia de “sanpaku” (“três brancos”), isto é, a crença de que a visibilidade da esclera na parte inferior do globo ocular indica um desequilíbrio e, em alguns casos, prediz uma morte violenta. Para combater a condição, Ohsawa criou uma dieta especial que colocaria “os olhos no lugar”. John Lennon, que possuía o “sanpaku”, seguia as recomendações e chegou a mencionar a sua condição na música “Aisumasen” (“I’m Sorry”).

Infelizmente, a frase de Tony Montana encontra uma grave aplicação prática: não funciona em anônimos. Ou, se funciona, é por mero acaso. No vagão de qualquer metrô, por exemplo, não seria difícil encontrar alguém com um olhar vazio de suicida que, na realidade, está tendo um dia excelente e só não gosta de estar apinhado no transporte coletivo. Ou, ao contrário, alguém muito simpático e sorridente que parece ser um autêntico “advogado da vida”, mas que, dentro de um quarto escuro, pragueja contra ela e está bem próximo de abreviá-la.

Isso não anula que “os olhos nunca mentem”. É apenas um lembrete de que é necessário algum contexto para interpretá-los de forma correta. Feita essa ressalva, me atrevo a compartilhar a leitura que fiz de dois olhos anônimos. Por mais inexata que seja, não deixa de ser um exercício interessante.

Eu tinha oito ou nove anos e passeava por um parque qualquer. Não me recordo quem me acompanhava. Distraía-me perambulando de um lado para o outro, quando, por algum motivo, parei para observar uma jovem que aparentava ter uns dezessete anos sentada na grama ao lado de um idoso (julgo que era seu avô).

Ela tinha os pés descalços e parecia estar bem entretida assistindo o balançar das folhas das árvores. Sobretudo, ela parecia estar num presente infinito, como um cão ou um gato. Não havia futuro nem passado para aquela menina, apenas o movimento eterno das folhas.

De repente, ela olhou para mim. Na minha memória, o seu rosto aparece desfocado, mas consigo me recordar de dois olhos amendoados de tamanho normal. Eu provavelmente cheguei bem perto dela (crianças podem fazer isso de forma socialmente aceitável). Lembro que a íris ostentava um verde quase cinza e os cílios eram longos. Não me recordo se ela tinha ou não o tal do “sanpaku”, mas me pareciam ser os olhos de alguém bem equilibrado.

Ela ficou me encarando durante algum tempo. Na minha cabeça, foi uma eternidade. Não me senti intimidado, apesar disso. Seus olhos expressavam uma bondade que parecia irreal, esquemática, daquelas que se lê em livros infantojuvenis de tão representativa, tão sem contradições. Não me entendam mal, não eram os olhos extáticos de uma santa durante uma hierofania. Estavam mais para os olhos de uma enfermeira da Cruz Vermelha que ajudaria um soldado ferido a trocar a sua bolsa de colostomia sem nenhum constrangimento. Eram os olhos de alguém que veio ao mundo para cuidar.

Se ela se tornou santa, médica ou assassina, jamais saberei. E talvez essa ausência de certeza aproxime os olhos de um quadro ou de um poema. Em posse das informações corretas (o contexto histórico, a biografia do autor etc), eles “não mentem”. Entretanto, quando nos resta o objeto em si, são possíveis diversas interpretações, que revelam mais sobre o estado de espírito do intérprete do que qualquer outra coisa.