O filme que transformou a Netflix em uma potência mundial, ganhou dezenas de prêmios, mas você certamente não assistiu Divulgação / Netflix

O filme que transformou a Netflix em uma potência mundial, ganhou dezenas de prêmios, mas você certamente não assistiu

O filme “Beasts of No Nation” é uma poderosa denúncia contra as injustiças e a violência em um país mergulhado em caos social, onde tiranos aproveitam-se do estado contínuo de agitação para impor suas vontades. Esse longa, dirigido e roteirizado por Cary Fukunaga, também responsável pela fotografia, se propõe a ser um manifesto em defesa das liberdades individuais e da esperança, apesar de retratar o oposto. Fukunaga opta por apresentar as imagens mais chocantes, juntamente com um texto que flerta com a leviandade.

Mesmo quando a narrativa se rende a cenas de violência extrema, Fukunaga encontra uma maneira de suavizar o impacto visual, destacando o absurdo dos conflitos entre homens até a morte, especialmente entre aqueles empobrecidos e brutalizados pela violação de seus direitos básicos. Este conceito é derivado do romance homônimo de Uzodinma Iweala, que serve de base para o filme.

A trama gira em torno de Agu, um menino de oito anos cuja família é exterminada por uma facção separatista em seu país, presumivelmente a Nigéria, considerando a nacionalidade do autor do livro. Abraham Atah entrega uma atuação impressionante como Agu, que sobrevive fugindo para a selva, onde se alimenta de ervas venenosas e vermes até ser capturado por outro grupo paramilitar liderado pelo Comandante.

O diretor amarra essas partes da história através da narração de Agu, que, mesmo lamentando, mantém uma voz firme e nunca chorosa, revelando ao espectador que sua família fazia parte de um grupo que havia deposto os tiranos responsáveis por sua destruição e que agora voltaram ao poder.

Idris Elba dá vida ao Comandante com uma interpretação que expõe a natureza cruel do líder, sem nunca deixar transparecer emoções mais profundas. Elba retrata um guerrilheiro profissional, um mercenário que vê na guerra uma oportunidade para subjugar os oprimidos. Sua experiência e talento permitem ao público uma análise sociológica do Comandante, como uma personificação do colapso dos ideais civilizatórios, moldando-se conforme o meio. Ele se considera o salvador das crianças que recruta, oferecendo-lhes um fuzil, um pouco de sua história e uma falsa sensação de proteção, criando uma relação paternal que muitos nunca tiveram. Assim se estabelecem as tiranias.

“Beasts of No Nation” destaca a rapidez com que uma criança inocente pode ser transformada em um assassino. Ao descobrir um gosto pelo abominável, os soldados deixam de ser meros seguidores para se tornarem pequenos tiranos. Agu, consciente do pecado ao matar um homem, percebe que está irrevogavelmente ligado ao Comandante, mesmo sabendo que nunca mais estará livre dele, apesar de um possível resgate no futuro.

O filme desafia constantemente os limites do espectador, sendo impossível não sentir o peso da manipulação de crianças como Agu, usadas por mercenários em troca de comida e abrigo. O desfecho do longa, que aponta para a difícil realidade desses meninos mesmo após se livrarem do Comandante, remete a cenários distópicos como o de “Senhor das Moscas”, de William Golding. Agu parece destinado a se tornar o próximo Comandante, pois todas as possibilidades de um futuro diferente lhe são negadas.

Por fim, é desconfortável que histórias centradas na África sejam frequentemente contadas por cineastas de fora do continente, quando há talentos locais capazes de narrar suas próprias histórias, como visto em “Amina” (2021), de Izu Ojukwu, e “Diário de um Pescador” (2020), de Enah Johnscott. Ainda assim, “Beasts of No Nation” oferece uma reflexão sobre o sofrimento de crianças como Agu, abandonadas pelas autoridades e pela sociedade, uma ferida aberta na humanidade que muitos preferem ignorar.


Filme: Beasts of No Nation
Direção: Cary Fukunaga
Ano: 2015
Gênero: Drama/Guerra
Nota: 9/10