Clássico do humor no cinema, na Netflix, vai te provar que não fazem mais comédias como antes Divulgação / TriStar Pictures

Clássico do humor no cinema, na Netflix, vai te provar que não fazem mais comédias como antes

A incorreção política de “Cegos, Surdos e Loucos” faz falta. Arthur Hiller (1923-2016) compõe um espetáculo da comédia física ancorado em dois atores completos, que encaixam no humor irrequieto de corridas, sopapos, quedas e perseguições de carro as tiradas que remetem o público direto para os anos 1980, o tempo da experimentação do besteirol em diversas frentes da cultura pop.

Hiller encontra no roteiro de Earl Barret, Arne Sultan (1925-1986) e Marvin Worth (1925-1998) todos os muitos ganchos de que precisa para levar a história a sequência de absurdos encarnada por um deficiente visual e um homem de audição restrita que se veem numa circunstância nada comum e tornam-se grandes amigos, depois de acusados de um crime misterioso, que por seu turno reflete a excentricidade fundamental da trama. Tudo muito bem amarrado, sem que sobre ou falte nada, graças à dupla de magníficos palhaços que armam o circo.

As tomadas do cotidiano alucinado e alucinante de Nova York, com seus indefectíveis táxis e ambulâncias, gente que vem e vai num alvoroço bem ao gosto das urgências do capitalismo e o mosaico barulhento que emerge de tudo isso situam o espectador no caos que Hiller quer denunciar. Dave Lyons administra uma banca num centro comercial na Quinta Avenida, na qual precisa de um ajudante. Wallace Karew é um homem sem muita qualificação profissional, dependente da irmã, Leslie, que acaba de ser despedido por um motivo que considera injusto. 

Leslie, apoio cênico indispensável de Tonya Pinkins, dá ao irmão uma carona até a frente do edifício onde Dave dá expediente, e no momento em que se oferece para guiá-lo até a entrada do prédio, ele salta do carro como se possuído por uma entidade maligna, até abrindo da bengala dobrável de que normalmente se utiliza. Ao contrário do que acontece com Dave, a limitação de Wallace é de fato um problema, ou seria, em sendo este um enredo que assume seu lado  farsesco e artificioso.

A prova disso é que ele cede o braço a outro cego que quer atravessar a rua, mesmo que os dois acabem no baú de um caminhão, erguidos por uma plataforma hidráulica. Milagrosamente, Wallace chega à porta do vistoso arranha-céu, entra com alguma dificuldade e mantém uma conversa entre inamistosa e hilária, pontuada por mal-entendidos de parte a parte, quando um sujeito corpulento cai do azul à procura de um antiácido.

O futuro novo balconista do estabelecimento sai por um instante, e a surdez não impede que Dave faça seu trabalho e atenda o homem, virando para procurar o remédio; nisso, encosta uma mulher para quatrocentos talheres e com as pernas embaladas a vácuo em meias-calças pretas, que entabula conversa com o gordo, de que, por óbvio, Dave não participa — o trio de roteiristas descobre um arranjo genial (e meio inovador à época) para explicar a perfeita compreensão do jornaleiro de tudo quanto se passa em seu entorno — e aproveita para esconder um objeto precioso na maleta do falso cliente. Minutos depois, da calçada, Wallace ouve um tiro, sente o perfume francês da moça e Dave olha aquele par de coxas se amalgamar ao povo na rua. E vão para a cadeia.

Gene Wilder (1933-2016) e Richard Pryor (1940-2005) equilibram-se entre cenas de humor “fácil”, pastelão sem chantili, e as blagues mais refinadas, raspando em tópicos a exemplo de racismo, misoginia, drogadição e, por natural, capacitismo — que se conhecia por outro nome. Wilder é brilhante ao reoxigenar o vaudeville de Buster Keaton (1895-1966), ao passo que Pryor livra-se de quaisquer vaidades e literalmente deixa-se manipular pelo colega, como o que fazem Steve Martin e Michael Caine em “Os Safados” (1988), dirigidos por Frank Oz, quiçá o filme mais engraçado de todos os tempos. Hiller repete Oz num nonsense mais cru, porém não menos arrasador, de um tempo em que ninguém tinha de pedir licença para gargalhar do era feito para causar riso. E acabava por também empreender algumas transformações.


Filme: Cegos, Surdos e Loucos
Direção: Arthur Hiller
Ano: 1989
Gênero: Comédia/Thriller
Nota: 9/10