Épico da Netflix, ignorado pelo público, é um dos filmes mais brutais da história do cinema David Eustace / Netfix

Épico da Netflix, ignorado pelo público, é um dos filmes mais brutais da história do cinema

“Legítimo Rei” destaca-se de forma impressionante. No filme de David Mackenzie, que abriu o Festival Internacional de Cinema de Toronto em 2018, os diversos takes aéreos obtidos por drones, o figurino meticulosamente detalhado, replicando trajes de setecentos anos atrás, e as batalhas coreografadas com precisão evidenciam a dedicação do diretor.

Ele entrega um filme impactante, transformando um tema complexo e obscuro em uma narrativa apaixonante ao abordar questões universais como cobiça, consciência social, ruína moral de uma família e o doloroso amadurecimento de uma nação. Mackenzie se destaca por extrair do elenco o que é essencial para engrandecer a história que escolheu contar, transformando episódios aparentemente triviais em pequenos épicos dentro da grande epopeia.

A força cênica do protagonista fornece a Mackenzie o impulso necessário para explorar um universo de histórias fascinantes e trazer à tona a trajetória de Roberto I (1274-1329), o soberano escocês que liderou uma guerra contra a monarquia inglesa no início do século 14. Chris Pine encarna perfeitamente o ideal do governante provedor, suprindo com determinação as necessidades de seu povo. A Escócia, na época, era um território com idiossincrasias geopolíticas complexas, e Robert The Bruce luta por seu império, mesmo lançando o país em um longo período de instabilidade após sua vitória.

Isso dissemina um sentimento de ressentimento entre seus súditos, da alta aristocracia ao vassalo mais humilde, que perdura ao longo do tempo. A atmosfera de relativa paz social é substituída por uma efervescência que toma conta dos escoceses, e “Legítimo Rei” captura esse fenômeno com um plano-sequência executado com maestria, revelando traços autoritários e misóginos do detentor da Coroa da Escócia.

O filme mostra claramente a disputa contínua entre Robert The Bruce e Edward I, príncipe de Gales vivido por Billy Howle, pelo trono escocês e pelo protagonismo da trama. O roteiro, coescrito por Mackenzie e outros quatro roteiristas, faz Pine e Howle alternarem entre os papéis de vilão e herói, refletindo a complexidade da vida real, que raramente é preto no branco.

Esta dinâmica entretém o público e ilustra a sofisticação narrativa do filme. À medida que a trama avança, o soberano das Terras Altas assume a figura de líder de guerrilhas contra um império mais poderoso, em uma representação ufanista da vitória escocesa sobre os súditos de Eduardo II (1284-1327).

Apesar de repetir o tema clássico do guerreiro destemido enfrentando um rival imponente, “Legítimo Rei” é um documento rigoroso sobre os conflitos entre escoceses e ingleses, que perduram ao longo da história. O aparecimento de Mary Stuart (1542-1587), retratada em “Duas Rainhas” (2018) de Josie Rourke, é um exemplo de como essas rivalidades continuam a ressoar. Trezentos anos após a vitória de Robert The Bruce, seu descendente Jaime VI (1566-1625) é coroado rei da Inglaterra, ilustrando as reviravoltas históricas que só a vida real pode proporcionar.

Outra interpretação possível do filme é a crítica às monarquias, que, sem o verniz da nobreza, assemelham-se às ditaduras modernas. Robert The Bruce sente isso ao manter-se no trono enquanto sua esposa, Elizabeth de Burgh (1289-1327), é sequestrada pelos ingleses. Florence Pugh, apesar do papel breve, entrega uma performance tocante que intensifica o dilema do rei, refletindo o sacrifício exigido de líderes ao longo da história. Governar é um exercício de renúncia a desejos banais, um tema que ressoa através dos séculos.

Histórias de tempos passados, onde governantes demonstravam algum apreço por seus governados, continuam a fascinar o público. Mesmo sete séculos após Roberto I, e sob uma constituição democrática, a Escócia ainda reconhece um rei como chefe de Estado, atualmente Charles III, desde a morte de Elizabeth II (1926-2022). A monarquia, como destacou Giuseppe Tomasi di Lampedusa em “O Leopardo”, muda para que tudo permaneça igual, uma descrição precisa das dinastias ao longo da história.


Filme: Legítimo Rei
Direção: David Mackenzie
Ano: 2018
Gênero: Drama/Ação
Nota: 9/10