Quando a sua terra natal está sendo violada por invasores, pouco importa se é domingo, feriado ou dia santo. É inútil. Não tem para onde correr e todos os dias são úteis para escapar e se esconder. O medo da morte não tem um só dia de folga. O terror faz hora extra e quem paga é o mais fraco. Quando a cidade cujas ruas você percorreu uma vida inteira está de pernas para o ar, destruída tijolo a tijolo pelo fogo inimigo, o único mister que resta é se enfiar num bunker, numa vala, num buraco e rezar para não ser visto. É impossível explicar para as crianças a lógica de uma guerra, sem desencantá-las: marchar, ocupar, dominar, seviciar, estuprar e exterminar. A atitude inglória de fugir de um algoz que invade o seu país pode parecer brincadeira para os pequenos. Afinal, são ingênuos como qualquer filhote e a sua maior ambição é brincar. Não estão acostumados com a miséria perpetrada pelos adultos. É indispensável instruí-los quanto ao beabá do ódio. Carece ter paciência com os pequeninos e lhes contar inverdades com a melhor das boas intenções: sobreviver. Quando você caminha em ruas desfiguradas pelos escombros de casas e prédios que você conhecia como a palma da mão é inevitável não se comover com as lembranças de uma vida ordinária e comezinha. Acordar cedo. Tomar uma ducha. Fazer amor. Tomar outra ducha. Escovar os dentes. Vestir as crianças. Comer o desjejum. Tomar um ônibus. Embebedar-se. Reclamar do governo. Dá um tremendo trabalho organizar os pensamentos nas prateleiras da mente quando se é submetido a um sofrimento abismal. Uma bomba que rebenta. Um prédio que rui. Uma praça que desaparece. Nacos humanos esparramados no passeio público. Nada, absolutamente, nada é simples quando se vive num cenário de guerra e de iniquidade. Quando a expectativa de vida parece derreter juntamente como os destroços em chamas, não faz a menor diferença se você se considera uma espécie rara de influenciador digital, se o saldo na conta bancária está positivo, se o gerente do banco é gente fina, se o prefeito é corrupto, se o salário vai ser corrigido acima dos índices inflacionários, se conseguiu arranjar um emprego com carteira assinada. Quando uma cidade inteira está sendo assassinada pelo extraordinário poderio bélico do invasor, sob o olhar impassível do restante do planeta, tudo o mais se torna absolutamente irrelevante. A balança comercial. O desenvolvimento sustentável. O IDH. O efeito estufa. O índice Dow Jones. A gordura trans. O sujeito transexual recém contratado pela empresa. A volta ou não da banda Oasis. O que predomina é a esperança em escapar do inferno, antes conhecido como lar. Quando o lugar onde você foi criado amanhece destruído como num filme é difícil não se desesperar. É uma das piores desgraças que podem suceder ao ser humano: ser expulso de casa por homens estranhos e migrar sem destino. Não adianta forçar as pálpebras para dormir. Sonhar não se faz com força, mas, com jeito. De qualquer forma, sempre se acordará com a realidade distorcida pela sensação de impotência e de abandono. As grandes potências, que se julgam as donas do mundo, restringem o seu poder de ação às notas oficiais inócuas e aos discursos tão empolados quanto ineficientes. A verdade é que ninguém se importa. Nem Deus. Nem o diabo. Nem a droga da ONU que, dentre estes, seria a entidade com reais condições para intervir e para pacificar os homens cunhados para a violência e para a mortandade. No final das contas, fato é que Deus e o diabo não estão nem aí com a gente.
Fazendo Deus de trouxa
Eberth Vêncio
É escritor e médico.