Baseado em obra-prima de Gabriel García Márquez, filme de realismo mágico estreia na Netflix Divulgação / Eurocine

Baseado em obra-prima de Gabriel García Márquez, filme de realismo mágico estreia na Netflix

É conhecida a relação de Gabriel García Márquez (1927-2014) com o cinema. Nos anos 1950, Gabo, como era chamado pelos mais próximos, foi crítico e chegou a cobrir pré-estreias de filmes, mas sua paixão pela tela grande era mesmo de outra natureza, quase clandestina, feito o amante que atravessa a rua para não encontrar a mulher com quem passa suas horas de maior êxtase. García Márquez nunca achou em seus artigos, publicados pelos jornal colombiano “El Espectador”, qualquer coisa que o distinguisse dos muitos outros profissionais da área — uns inequivocamente bons, outros nem tanto —, muito pelo contrário, mas sabia do potencial fílmico de seus romances. Talvez tenha sido por essa razão que demorou a assentir que o amigo Arturo Ripstein elaborasse sua versão de “Ninguém Escreve ao Coronel”, e isso diz muito dos dois. 

A perseverança de Ripstein e o zelo de García Márquez com a própria obra levaram a um melodrama bastante fiel ao estilo do romancista, sem que o cineasta precisasse renunciar de todo a suas intenções autorais, efeito conseguido graças à importância dada a detalhes a exemplo da fotografia, a cargo de Guillermo Granillo, e da direção de arte de Antonio Muño-Hierro, competente ao transpor a história da Colômbia para o México sem deformar nada. 

Da história original, publicada em 1961 na novela homônima de García Márquez, se reconhece a troca de uma das várias guerras civis colombianas, ainda não resolvidas oficialmente, pela breve menção à Guerra Cristera, um levante do povo mexicano contra as leis anticlericais impostas pela Constituição de 1917, entre 3 de agosto de 1926 e 21 de junho de 1929. Por seu turno, Paz Alícia Garciadiego, a roteirista e esposa do diretor, enfatiza os aspectos tão pontuais que unem essas duas manifestações de talento e poesia esmerados.

Toda sexta-feira, o velho coronel espera pela pensão de ex-combatente, a única salvação para ele e a mulher, Lola, que há algum tempo já vem experimentando o gosto amargo da fome. Ele veste o único terno e sai do casebre humilde onde os dois moram e parte esperançoso para a sede dos correios no centro do povoado onde gasta um dinheiro que há de faltar-lhe na barbearia, onde fica a par dos últimos acontecimentos. 

Em fragmentos como esse, Ripstein imprime a essência de García Márquez, arguto observador do mundo que o cercava: está em seu filme o defunto embelezado para o enterro ao passo que a mãe dele, de Juana Garza, tira um dedo de prosa com o coronel, que mostra-se impaciente com a conversa. 

Ele só consegue mesmo é sonhar com o benefício, que torna-se mais e mais distante, embora todos o alertem sobre a necessidade de se contratar um “agente” para tratar do assunto. Aos sessenta anos, Fernando Luján (1939-2019) demonstra segurança na pele de um ancião decrépito, lutando pela sobrevivência e deixando para o galo, que inscreve em execráveis rinhas em uso até hoje, o melhor do pouquíssimo que é capaz de amealhar. Igualmente assombrosa é a interpretação de almodovariana Marisa Paredes para Lola, padecendo de uma asma implacável, mas que não se furta a embarcar nos delírios do homem sem o qual não sabe mais viver (nem morrer). 

A presença de Salma Hayek como a meretriz Julia, uma vamp intuitiva e espirituosa, coroa uma sátira acerca das pequenas e grandes depravações do ser humano, sem nenhum pejo quanto a atirar à lama da humilhação para saborear o que julga ser a felicidade. Mas com muito mais humor que Gabo.


Filme: Ninguém Escreve ao Coronel
Direção: Arturo Ripstein|
Ano: 1999
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10