O ano de 1843 marcou o estabelecimento de uma nova ordem. As monarquias absolutistas da Europa, o Velho Regime, demorariam ainda um bom tempo para cair, mas os donos do poder já começavam a experimentar o clamor desembaraçado e genuíno de quem gerava riqueza, mas nunca dela se usufruía. Esse fenômeno consolidou-se de vez quando, na Inglaterra, homens, mulheres e crianças lutavam pela sobrevivência em tecelagens e fábricas de móveis, nas quais esfalfavam-se em jornadas de dezoito horas de trabalho todos os dias, sem direito algum que não o salário de fome.
A Revolução Industrial (1760-1840) pariu um novo estrato da sociedade, a classe trabalhadora, uma gente em farrapos, imobilizada pelos grilhões da acumulação de bens dos patrões, que um filósofo alemão chamou de proletariado. “O Jovem Karl Marx” perpassa uma fase lírica e difícil da vida de seu biografado, um homem que atravessa boa parte do século 19, quando nasceu, em 1818, em Tréveris, na Renânia, oeste da Alemanha, fugindo de autoridades e perseguidores, até morrer, em Londres, arruinado e espantosamente convicto do que defendera ao longo de quatro décadas de uma militância algo utópica pela transformação em que acreditava tanto.
O haitiano Raoul Peck capta essa aura sonhadora de Marx, um espírito verdadeiramente livre, mas sempre à cata de aprovação. Pelas primeiras cenas, nota-se no roteiro de Peck, assinado com Pascal Bonitzer e Bertina Henrichs, a vontade de revestir Marx de um verniz humano, ainda que alguns pontos da doutrina em nome da qual empenhou a própria vida contradissessem essa intenção.
Aos 25 anos, Marx publica no “Rheinische Zeitung” artigos nos quais desqualifica ordenamentos jurídicos como o que garantia ao latifundiário botar na cadeia miseráveis que se invadissem um bosque de sua propriedade para recolher madeira podre que lhes servisse de lenha, sem arrancar um galho sequer. Comprar essas brigas, justíssimas, era a certeza de que a polícia bateria à porta do jornal, empastelaria as instalações e levaria a equipe para dormir uns dias no xadrez. Peck registra o princípio do tormento de Marx, obrigado a se exilar em Paris com a mulher, Johanna von Westphalen (1814-1881), a Jenny, e a primeira filha.
August Diehl e Vicky Krieps apresentam interpretações primorosas, por meio das quais se entende Marx para além da sisudez do materialismo científico. É na capital da França onde amadurece as ideias pelas quais é conhecido ainda hoje, como a mais-valia, que nada mais é que o tempo que leva para que uma mercadoria fique pronta. É com base nesse tempo que o industrial estima seu lucro, fundamento do capitalismo.
O tempo que o trabalhador gasta para produzir alguma coisa — automóveis, creme dental, arranha-céus, filmes —, e nunca se converte em ganho para si, mas para quem o emprega. Também é na Cidade Luz que Marx conhece Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), um dos primeiros teóricos do anarquismo libertário, e Mikhail Aleksandrovitch Bakunin (1814-1876), que acenderam centelhas em direções para as quais não atentara ainda. Num desempenho mediúnico, Olivier Gourmet, como seu personagem, também acrescenta novas camadas ao filme, o que Ivan Franek não consegue na pele do russo, por mera falta de oportunidade.
Antes, na virada do primeiro para o segundo ato, a ida de Marx a Manchester, berço da Revolução Industrial inglesa, claro, define muito do caráter diegético do longa, como uma linha do tempo que esquadrinha o movimento pela consolidação das liberdades individuais no transcurso de quase dois séculos.
O encontro de Marx e Friedrich Engels (1820-1895), filho de um grande capitalista de quem emprestava o nome, por evidente, é o eixo em torno do qual a história se move, ainda que “O Jovem Karl Marx”, no Prime Video, siga apostando no que os livros não costumam dizer deles. Stefan Konarske junta-se a Diehl em cenas mais e mais comoventes, como a que prepara o desfecho, e Engels faz a proposta indecente que crava a fissura natural entre dois gênios que jamais deixaram de se admirar. Em 21 de fevereiro de 1848, o “Manifesto Comunista” chega às ruas e eclode uma insurreição de classes em toda a Europa Ocidental. A utopia materializava-se, enfim.
Filme: O Jovem Karl Marx
Direção: Raoul Peck
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 9/10