Em seu quarto frio, uma princesa sonhadora observa as estrelas tremendo com o amor e a esperança que dela emanam, sem poder dormir. Ao som de “Nessun Dorma” (1926), Maria Santos, uma saltadora em distância, costumava treinar, assistida pela mãe, Helena, uma ex-atleta olímpica da modalidade. Algum tempo, Maria não tinha mais nada, nem o esporte, nem a mãe e muito menos a ópera do italiano Giacomo Puccini (1858-1924), mas não reconhece a derrota.
É necessário uma boa dose de paciência para chegar-se ao que interessa em “Biônicos”, o novo filme do brasileiro Afonso Poyart. Depois da promissora estreia em longas com “2 Coelhos” (2012), de uma incursão por Hollywood solenemente ignorada, caso de “Presságios de um Crime” (2015), e do sucesso fácil de “Mais Forte que o Mundo — A História de José Aldo” (2016), Poyart volta ao bom caminho num trabalho corajoso, cujo brilho é eclipsado aqui e ali por escolhas infelizes como a trilha, a cargo de Patrícia Portaro e Silvio Pellacani Jr., na qual “Nessun Dorma” aparece bem menos que um rap de Emicida — e umas outras ainda mais danosas. O roteiro do diretor, coassinado por Cris Cera, Victor Navas e Josefina Trotta, não é um primor de sofisticação, abusando de frases de efeito e prescindindo de qualquer respiro cômico. Assim mesmo, o saldo é positivo.
Nas entrelinhas, “Biônicos” é uma estimulante discussão acerca de valores, família, a impossibilidade de se melhorar de vida em dadas circunstâncias e, claro, em que medida a tecnologia tem parte no calvário do homem. Poyart vale-se da sequência inicial para explicar o mote central do enredo. Átila Hirsh, o ex-boxeador caído em desgraça interpretado por Klebber Toledo, acessa a sala de cofres de um banco para retirar os conteúdos de três unidades.
Numa delas está a prótese de titânio à Robocop que ele usa para derrubar o gerente que o acompanhara e surrupiar um saquinho de veludo cheio de diamantes que, vai-se assistir, não têm o valor esperado. Antes que chegue à rua, o alarme dispara e Átila, o Miúdo, termina sendo atingido pelos seguranças. Seu irmão mais velho, Heitor, o Baby, contava ir embora com ele, mas leva só as pedras. Esse confuso segmento, mal-elaborado e um tanto solto do resto da história, serve de preâmbulo para um segundo ato ágil sem prejuízo do que se quer contar e do que importa.
Gabi, a irmã de Maria, usa uma prótese semelhante à de Miúdo, e com ela bate um recorde atrás do outro. Aqui, o diretor aproveita para matar fazer alguns esclarecimentos quanto ao personagem de Toledo ao passo que esmiúça a relação das irmãs Santos. Se Gabi, a mais nova, soube reinventar-se depois do tumor que a obrigou a amputar toda a perna direita, Maria, por seu turno, se ressente dessa evolução, que lhe parece fraudulenta, mas o motivo de sua indignação é bem mais comezinha.
Gabz e Jessica Córes encontram o justo tom da rivalidade entre Gabi e Maria, hábeis em também explorar as nuanças de empatia e admiração que há de uma para a outra. Com Bruno Gagliasso, Córes faz vir a tona o lado mais humano e complexo da protagonista, mormente depois que seu desejo inconfessável se realiza e ela também vira um biônica. Por absurdo que soe, o amálgama de “King Richard: Criando Campeãs” (2021), de Reinaldo Marcus Green; “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2014), de Alex Garland; e “Blade Runner 2049” (2017), de Denis Villeneuve, funciona. Ponto para Poyart.
Filme: Biônicos
Direção: Afonso Poyart
Ano: 2024
Gêneros: Ficção científica/Ação
Nota: 8/10