Grandes diretores têm explorado as lembranças, doces e amargas, de personagens em processo de amadurecimento. De mestres como Ingmar Bergman, com “Fanny e Alexander” (1982), e Federico Fellini, com “Amarcord” (1973), aos contemporâneos Luca Guadagnino, em “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), e Paolo Sorrentino, com “A Mão de Deus” (2021), o cinema frequentemente mergulha na nostalgia. Fernando Trueba, em “A Ausência que Seremos” (2020), une-se a esse grupo com uma obra envolvente, perturbadora e honestamente emotiva.
Trueba vai além de simplesmente adaptar as memórias de alguém devastado pela perda precoce e injusta de um ente querido. Ele transforma a história em um documento histórico, mantendo a essência da narrativa, que é delicada por ser vista através dos olhos de um menino.
Décadas depois, esse menino, agora adulto, escreve um livro sobre a vida de seu pai, que serve de base para o filme de Trueba. Héctor Joaquín Abad Faciolince, jornalista e escritor colombiano de Medellín, capital do departamento de Antioquia, é filho do médico Héctor Abad Gómez, defensor dos direitos humanos na Colômbia durante a ditadura do general Gustavo Rojas Pinilla. A narrativa, vista pela perspectiva do jovem Héctor, Quinquín, retrata sua relação com o pai até o trágico assassinato de Abad Gómez por milicianos ligados ao narcotráfico, um flagelo constante na Colômbia, temporariamente mitigado sob o governo de Álvaro Uribe, que se recusou a negociar com grupos paramilitares e as FARC.
O tempo, implacável, apaga muitas memórias, mas quase quatro décadas após a morte de Abad Gómez, poucos colombianos ainda lembram de seu trabalho como sanitarista, coordenando pesquisas sobre saneamento básico e saúde pública. A recente pandemia de covid-19 reacendeu o interesse por figuras como Abad Gómez, um protagonista cuja relevância é destacada no roteiro escrito por Fernando e David Trueba.
No filme, Javier Cámara, um ator associado a Pedro Almodóvar, interpreta Abad Gómez, enquanto Nicolás Reyes assume o papel de Quinquín na infância. A história alterna entre a infância do garoto nos anos 1970 e sua juventude a partir de 1983, quando é interpretado por Juan Pablo Urrego. Essa fase cobre seu tempo em Turim, na Itália, e suas visitas de verão à Colômbia, onde, durante uma dessas visitas, testemunha o assassinato do pai, então candidato a prefeito de Medellín, abatido enquanto atendia um grupo de eleitores. Acusado de guerrilheiro e democrata falso pelas milícias, Abad Gómez, um humanista incorrigível, enfrentava a oposição tanto da direita conservadora quanto da esquerda fragmentada, que o via como aliado do imperialismo americano devido à sua formação na Universidade de Minnesota.
Abad Gómez, em determinado momento do filme, declara que a vida na Colômbia não tinha valor, uma constatação precisa para um país dilacerado pelo narcotráfico e regimes autoritários. Héctor Joaquín Abad Faciolince emergiu como um dos escritores mais respeitados da América Latina, enquanto os responsáveis pela morte de seu pai nunca foram punidos.
Filme: A Ausência que Seremos
Direção: Fernando Trueba
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 9/10