Último dia para assistir na Netflix ao filme que ganhou 3 Oscars e foi aplaudido de pé Divulgação / Columbia Pictures

Último dia para assistir na Netflix ao filme que ganhou 3 Oscars e foi aplaudido de pé

Talvez a falha mais grave de um filme seja a de enganar o espectador, fazendo-o acreditar em algo completamente distinto do que realmente é exibido. Essa técnica geralmente é aplicada quando o tema central da narrativa é complexo, ambíguo, ou muito diferente da realidade que o público conhece. Compreender certos aspectos de uma realidade já distante no tempo é especialmente desafiador, e torna-se ainda mais complicado quando o assunto é por natureza controverso. Todo cuidado é essencial.

O filme “Memórias de uma Gueixa” (2005) não tem a pretensão de agradar, por exemplo, às feministas do século XXI, que veem como absurdo o que Rob Marshall busca explorar. Uma estratégia eficaz para absorver todas as informações de uma narrativa como esta é iniciar sabendo o mínimo possível sobre o assunto e só depois confrontar o conteúdo com a realidade dos fatos. Só então é possível estabelecer comparações com o contexto atual, e o choque é inevitável.

Assistir a “Memórias de uma Gueixa” oferece uma profunda imersão na história e cultura do Japão, inclusive em aspectos que o país não esconde não ser. O filme de Marshall cria uma alegoria elaborada sobre a vida de uma gueixa no início do século passado. As gueixas, figuras controversas, não eram prostitutas como o ocidente sempre as viu, mas também não deixavam de ser. Apaixonavam-se por seus clientes, e até cometiam suicídio diante da impossibilidade desse amor, mas nunca esqueciam que eram, em essência, pouco mais que objetos, com uma função específica e facilmente substituíveis. Sua noção de felicidade era vaga, obscurecida por uma liberdade cruelmente restrita. Viviam de uma ilusão, conscientes de sua infelicidade.

O filme enfatiza a beleza que poderia existir para uma mulher pobre, mais vulnerável às condições sociológicas do Japão daquela época, ao se tornar a favorita de um homem influente. Marshall destaca o caráter não sexual de uma boa gueixa, mulheres que, embora servilmente dedicadas, tinham a habilidade de manipular seus clientes. Uma boa gueixa era, antes de tudo, uma excelente ouvinte, a companheira que nenhuma esposa poderia ser. A relação era muito mais baseada em dinheiro e afeto do que em sexo, e a confiança que uma gueixa inspirava era seu maior ativo, embora elas ficassem com apenas uma pequena fração do que ganhavam.

“Memórias de uma Gueixa” desperta sentimentos primitivos, ao mesmo tempo que encanta pela beleza visual. A brutalidade do que é mostrado é equilibrada pela estética sublime, e Rob Marshall combina esses elementos de forma impecável. A trilha sonora, com o violoncelo de Yo-Yo Ma e o violino de Itzhak Perlman, é tão marcante quanto a fotografia de Dion Beebe. É difícil imaginar o filme sem suas atrizes deslumbrantes e seu refinamento estético, que superam os padrões comuns da indústria cinematográfica. Este é um filme artesanal no sentido mais elevado, sem medo de julgamentos sobre sua suposta falta de objetividade. Parece que buscar a excelência é uma afronta aos medíocres, mas isso não é verdade. E se fosse?

Tentativas de desqualificar um filme particularmente bom incluíram argumentos mais políticos do que artísticos. A “incorreção” de “Memórias de uma Gueixa” residia no fato de que um enredo tipicamente japonês era protagonizado por atrizes chinesas e uma sino-descendente, uma irrelevância que o tempo transformou em um suposto erro imperdoável. O que os críticos esquecem é que Ziyi Zhang, Gong Li e Michelle Yeoh são as atrizes asiáticas mais prestigiadas globalmente, capazes de atrair bilheterias fenomenais. Elas trazem ao roteiro de Robin Swicord, baseado no romance de Arthur Golden, a magia necessária para a história. Essa magia permeia toda a trama, desde o pescador viúvo que vende suas filhas no mercado humano de Kyoto até a trajetória de Chiyo, vivida por Suzuka Ohgo na infância e por Ziyi Zhang na fase adulta.

Em uma das cenas mais comoventes, Chiyo, desolada, encontra o Presidente, interpretado por Ken Watanabe, que lhe dá um pouco de atenção antes de seguir para um baile. Este breve encontro enche a garota de esperança, e ela vai a um templo pedir aos deuses que se reencontrem. Marshall mantém esse tom de conto de fadas ao longo da narrativa, uma elegia às armadilhas do destino e à perda da inocência, tudo apresentado com uma elegância singular.


Filme: Memórias de uma Gueixa
Direção: Rob Marshall
Ano: 2005
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10