Se tivéssemos conhecimento das intimidades alheias, ninguém mais se cumprimentaria. Essa frase do notável Nelson Rodrigues (1912-1980) não se limitava aos hábitos sexuais, mas é inevitável concluir seu raciocínio com uma menção direta ao que ocorre — e, mais relevante, ao que é evitado — em momentos privados.
A curiosidade sobre as vidas íntimas dos outros levou William Moulton Marston (1893-1947) a enfrentar um dos maiores desafios de sua existência, registrado em “Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas”. O filme de Angela Robinson, infelizmente, permanece extremamente pertinente. Desde 2008, existe uma lista de livros proibidos pela Associação Norte-Americana de Bibliotecas (ALA), que designou “Gender Queer: A Memoir” (2019), uma graphic novel sobre identidade de gênero, como o inimigo número um do povo americano hoje.
O livro de Maia Kobabe explora a sensação de inadequação social da autora, desde a adolescência até a idade adulta, e a descoberta de ser uma pessoa não-binária ou de gênero fluido. “Gender Queer” busca explicar a nova sexualidade do século 21 usando uma linguagem que remete aos quadrinhos, algo que provavelmente encheria Marston de orgulho 76 anos após sua morte. Marston, ao longo de sua vida, tentou validar uma teoria que englobava todos os comportamentos sexuais em quatro categorias. Sua teoria só ganhou notoriedade quando ele a aplicou na criação de uma personagem com curvas marcantes, longos cabelos negros e um laço imponente.
Para entender a Mulher-Maravilha como a conhecemos, Robinson explora a vida de Marston, voltando à Nova York de 1945. O Dr. William Marston, já reconhecido por nerds e acadêmicos globalmente, enfrentava o questionamento de Josette Frank (1893-1989), especialista em literatura infantil e presidente da Associação Norte-Americana de Estudos da Infância (CSAA). Frank buscava que Marston confessasse o que todos já suspeitavam: sua super-heroína, inicialmente chamada Suprema, líder das amazonas da Ilha Paraíso, foi concebida como um símbolo de libertação feminina, uma ameaça ao patriarcado, à família tradicional, à moralidade, à Igreja e até ao capitalismo.
No primeiro ato do filme, a teoria DISC (dominação, indução, submissão e cumplicidade) de Marston é comprovada como eficaz, o que explica a intensa perseguição que sofreu, resultando na queima de seus quadrinhos em cenas chocantes. Apenas após 80% do filme, o público compreende totalmente essa conclusão. Muito antes disso, fica claro que o título faz referência a Elizabeth Holloway Marston (1893-1993) e Olive Byrne (1904-1990), as parceiras de Marston.
Após sua morte, Elizabeth e Olive mantiveram o espírito de guerreiras de uma utopia de justiça e liberdade, vivendo juntas por mais 38 anos até a morte de Olive. Juntos, Marston, Elizabeth e Olive criaram quatro filhos. Peter Marston (1928-2017), o segundo filho, fundou e dirigiu o Museu da Mulher-Maravilha até sua morte em 2017, inspirando-se sempre no legado dos pais.
Filme: Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas
Direção: Angela Robinson
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 9/10