“Guerra Civil” causou uma grande comoção. Trata-se de um filme que tem o declínio do governo dos EUA em meio a uma guerra civil. No Brasil, a repercussão se ampliou devido a presença do ator Wagner Moura, no elenco principal, contracenando com a ótima atriz, Kirsten Dunst.
Dirigido pelo premiado Alex Garland, Guerra Civil é uma distopia que passa em um tempo atual. Cenário onde se reúne uma equipe de jornalistas de guerra, composta por Lee Smith (Kirsten Dunst) e seu colega de trabalho Joel (Wagner Moura), que viajam atrás do último registro do presidente estadunidense, antes de sua derrota final. Porém, Guerra civil não é um filme sobre uma guerra civil.
É um filme sobre o olhar. “Guerra Civil” me remeteu, imediatamente ao livro de Svetlana Aleksiévitch, “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher”, que relata que a história das guerras costuma ser contada sob o ponto de vista do olhar masculino. É uma forma de calar a voz feminina mesmo quando elas participaram diretamente nos conflitos.
Este livro, em sua incomensurável contribuição, conta ainda como as mulheres partiam com alegria e voltavam com medo. Um medo que se estendia a essa transição de um olhar “de guerra” para um olhar hesitante e envergonhado de si mesmo, por ser atravessado pelas opiniões dos outros: “Na primeira vez que usei um vestido, me afoguei em lágrimas. Eu mesma não me reconhecia no espelho, estava havia quatro anos usando calças”.
O livro de Svetlana Aleksiévitch, me ajudou a situar, em “Guerra Civil”, de como há algo do feminino, através do olhar, que circunda o enredo, a partir dos lugares e posições dos vários olhares. A questão central da personagem Lee Smith, era o olhar, mas o olhar que cai, se torna objeto para o mundo, a fotografia. Barthes comenta que a fotografia é inclassificável. É uma repetição mecânica do que nunca mais poderá repetir-se existencialmente.
E é justamente isso que se destaca em “Guerra Civil”, uma impossibilidade de repetição existência de um entusiasmo pelo desejo, da alegria de ir para a guerra, que se esvai no decorrer da vida profissional de Lee Smith. Mas ela reencontra algo desse olhar ao ter seu caminho cruzado por Jessie, personagem de Cailee Spaeny.
“Guerra Civil” apresenta uma narrativa que, à princípio, é um clichê. Seria mais um filme sobre a jornada de uma anti-herói mais velha e niilista que, ao reencontrar uma jovem, pode restaurar sua crença na vida e na humanidade. Um enredo de fórmula comum e que perpassa “Guerra Civil”, mas seria uma injustiça reduzir o filme a isso, pois, apesar da fórmula, a questão do feminino grita em meio à caracterização da brutalidade masculina sob o cenário da guerra.
Lee Smith e Jessie partem nessa jornada. Lee em uma espécie de estado crepuscular, no movimento automático que parece ter se transformado a forma com a qual ela pode lidar com o absurdo da brutalidade que fotografava. Não se envolver com o que está acontecendo, só registrar. Uma isenção pragmática que, ao longo da vida, se revelou uma ilusão. Não há como não se envolver no que se captura com a fotografia. Quanto a Jessie, fotógrafa inexperiente e em início de carreira, entusiasmada para fotografar, ela passa a ser testemunha e registrar a jornada de esvaziamento do desejo de Lee Smith. Jessie se torna um olhar que retorna a Lee Smith sobre ela mesma.
O pano de fundo para contar essa jornada, é uma guerra civil nos Estados Unidos. Um cenário distópico, absurdo, mas ideal para dar contorno à delicadeza do olhar em contraste com a brutalidade da guerra, que é caracterizada por insígnias masculinas, por excelência. A relação de Jessie e Lee Smith é um registro da admiração da mulher por outra, que consegue chegar a um ponto significativo de sua carreira profissional, a partir de um trabalho que produz efeitos estéticos e de transformação na vida das pessoas. Lee Simth é fotógrafa de guerras.
Apesar disto, seu trabalho não deixa de ter um aspecto cada vez mais raro, a difícil capacidade de produzir beleza. Mesmo uma beleza no absurdo da guerra; este olhar que se entrega para o mundo, que se deixa cair, que é destacado com objeto, vai para o mundo e é reencontrado por Jessie. Este olhar que Jessie pega pra si para produzir uma perspectiva própria. Trata-se da fotografia, este momento silencioso tão bem descrito no filme a partir de cenas muito barulhentas que, de repente, fazem silêncio na captura da imagem.
Uma capacidade de se produzir esse olhar é a capacidade de produzir beleza a partir da catástrofe da guerra, do caos sangrento. O olhar que produz a fotografia não existiria sem um desejo. Barthes chega a falar que é o princípio da aventura que permite a Fotografia existir. O que nos ajuda a entender o entusiasmo de Jessie e dos rumores que nos dão pistas de que Lee Smith ainda mantem algo assim, mesmo que em declínio. Aos poucos, Lee Smith vai perdendo a sua capacidade de produzir beleza, que vai ficando opaca até o ponto em que ela apaga a memória da câmera. Cena que denota o apagamento do dado-a-ver do olhar. A partir desse momento, Lee Smith passa a condição de angústia, de falta da falta do objeto olhar, que causava seu desejo, paralisada no choro sem perspectiva de um olhar. Jessie acompanha e registra esse processo de esvaziamento de Lee Smith, mas não se mantém inerte a ele.
Em uma cena sutil e comovente, Jessie captura o sorriso de Lee Smith, no momento em que ela a faz experimentar um vestido, se deslocando totalmente do hábito/vestimenta de fotógrafa de guerra. Aquele sorriso abre um outro olhar para si. Ele congela, na imagem, o respiro existencial de Lee Smith em meio ao afogamento angustiante que a guerra aos poucos foi lhe impondo.
Toda comoção de Lee Smith com Jessie é justamente com esse processo de apagamento do olhar e desumanização que a jovem fotógrafa sofrerá como fotógrafa. É um limite tênue entre o a aventura do desejo e a sua mortificação, na violência da guerra. Entre o senso de justiça e revolta contra os atos da guerra ou a produção das fotografias/olhares, deixando-as cair no mundo. É reconhecer que nada pode fazer no instante da brutalidade a não ser registrar e capturar essas cenas para o mundo.
O cenário onde a jornada de Jessie e Lee Smith se passa é eminentemente masculino. O contraste entre esses universos se dá em relação ao muito bem executado personagem de Wagner Moura, o Joel. Um jornalista que acompanha Lee Smith em busca da grande reportagem, a última entrevista com o presidente dos EUA. Joel vibra com a excitação da guerra. Sente a irresistível vontade de ir na direção de um tiroteio e se aventura no pragmatismo de quem conversa naturalmente com assassinos. É um homem viril, voz grossa, sempre fumando seu cigarro em gestos longos, com tragadas ruidosas e bebendo vodka a qualquer momento. É uma construção clichê e caricata da figura masculina inabalável.
Junta-se a jornada, o jornalista Sammy que, já idoso, é uma espécie de oráculo para Lee Smith. Sammy é absolutamente consciente da realidade. Sabe que aquele mundo brutal não é mais para ele, por isso, ele tenta uma última reportagem, mais segura e planejada. Sammy pega uma carona na jornada de Lee Smith e termina marcando um aspecto central do filme, a efemeridade da vida.
A cena final de Sammy sintetiza a contradição presente no filme, a da beleza na destruição. Em meio às fuligens de um incêndio provocado pela guerra, o seu olhar atravessa sereno em encantamento com o espetáculo de luzes que pareciam Vagalumes flanando no ar. Mais uma vez, a diferença olhares se coloca. A mesma beleza dos vagalumes de fuligem é vista como incêndio e destruição pelos demais.
Essa contradição perpassa todo filme, para situar a contradição da beleza produzida por um olhar, na guerra. A beleza que eleva a fotografia de cenas brutais à dignidade da coisa; a um objeto de arte que captura a cena silenciosa ao se destacar do olhar do fotógrafo. O grande dilema ao elevar a captura do olhar ao estatuto de obra de arte é encarado por Jessie nos momentos finais do filme.
Lee Smith a salva de um disparo colocando seu corpo à frente. Nesse momento, retorna uma questão colocada por Jessie, sobre se Lee Smith a fotografaria se ela morresse na guerra. Continuar fotografando ou lamentar? Momento de decisão do ato na angústia, como uma Antígona que não cede de seu desejo, mesmo com toda a dor. “Navigare necesse, vivere non est necesse”, e o dilema é continuar fotografando passou a ser aquilo que se poderia fazer para o que deu sentido a vida de Lee Smith.
De certa forma continuar fotografando é capturar a grande foto, que é o objeto que reuniu a todos na jornada. É elevar a vida de Lee Smith em seu desejo, no que ele não cedeu e por aquilo que ela morreu. A jornada percorrida por Lee Smith e Jessie, coloca para o espectador um laço que é tecido no interior de um cenário brutal. O cuidado com o olhar que essas duas mulheres produzem destacam o paradoxo de um ato diante da morte que se mostra em seu aspecto mais terrível, pelo que se vive e se morre.
O filósofo Clement Rosset, comenta que “morrer seria um mal menor se pudéssemos ter como certo que ao menos se viveu”; “o que angústia o sujeito, muito mais do que a sua morte, é antes de tudo a sua não-realidade, a sua não existência” neste mundo, nesta vida. Uma não-realidade experimentada radicalmente, como excesso, por Lee Smith, mas que, ao final, reencontrou-se na existência de seu desejo mais puro, se entregando, como objeto, para a captura de um olhar que a transformou naquilo que ela melhor se dedicou, a fotografia.