Antes de Capitão Nascimento, houve Naldinho, um dos muitos outros tipos interpretados por Wagner Moura no cinema. Se o policial incorruptível e durão que protagoniza “Tropa de Elite” (2007), o excelente drama sociológico de José Padilha, tem seu próprio jeito de lidar com as tantas e tão danosas brechas legais no ordenamento jurídico brasileiro, o personagem de Moura em “Cidade Baixa” é a encarnação mesma do Brasil que deu errado, da criminalidade latente, pronta para aflorar ao primeiro sinal de que a temperatura está saindo do tolerável, do submundo que pulsa num espírito martirizado por uma vida sem horizontes.
A estreia em ficção de Sergio Machado, diretor do premiado “Onde a Terra Acaba” (2001), perfil (cine)biográfico de Mário Peixoto (1908-1992) com imagens até então inéditas do segundo longa, inacabado, do cineasta, belga de nascimento, remete à obra máxima de Peixoto. “Limite” (1931) é a história de três navegantes, duas mulheres e um homem que refletem sobre suas tragédias pessoais enquanto se dão conta de que não voltarão à terra firme.
Aqui, outro trio de desgraçados, dois homens e uma mulher, tem o mar por confidente de seus lamentos e testemunha de suas misérias, e ainda que a Cidade Baixa do título, uma região empobrecida e perigosa de Salvador, esteja sempre em quadro, Naldinho, Deco e Karinna estreitam seus abraços e suas dores num velho barco de carga, até que seu desespero os arremessa contra o porto.
Por sua riqueza, essa trindade nada santa justifica toda a história. Depois de entregar uma encomenda, Naldinho encontra Karinna à beira mar num povoado a alguns quilômetros da capital baiana. Com ele está Deco, o amigo e sócio interpretado por Lázaro Ramos, e Karinna, a jovem prostituta de Alice Braga, lhes pede que levem-na, em troca de quarenta reais e sexo, com os dois.
Nesse breve introito, Moura, Ramos e Braga, nessa ordem, determinam a cadência do enredo, marcado pelos diálogos ágeis e objetivos do roteiro escrito por Machado, Adriana Rattes e Karim Aïnouz — que já tinha no currículo como diretor o instigante “Madame Satã” (2002), por meio do qual conheceu Ramos, e veio a ser uma das personalidades do cinema brasileiro mais celebradas do mundo. “Cidade Baixa” é um filme anedótico, espécie de amuleto para muita gente que nele tomou parte, e no caso dos três atores, parece ainda hoje um digno cartão de visita, amplo e detalhado o bastante para convencer qualquer um de há ali artistas seguros de seu ofício, dispostos a renunciar à vaidade por um bom papel.
Nesse aspecto, o caso de Braga é de longe o mais simbólico. Graças a ela, ninguém duvida que milhares de Karinna mundo afora se ofereçam nos cais das metrópoles e dos vilarejos, com seus cabelos oxigenados e roupas justas e microscópicas. O diretor sabe tirar proveito da antiestética da anti-heroína para fazer o público confundir-se com ela, pensá-la uma garota ingênua, mas prestes a escolher apenas um dos dois homens, o que lhe possa dar alguma garantia um pouco mais sólida de que vá sair daquela vida.
Num lance destemido, Machado induz o espectador a pensar que isso vai mesmo acontecer no momento em que ela anuncia esperar um filho, que, claro, pode ser de Naldinho ou de Deco (ou de qualquer um com quem passara a noite por força da profissão). A maneira como Machado termina “Cidade Baixa”, na Netflix, faz questão de esclarecer que Karinna, Deco e Naldinho, nessa ordem, não vivem um sem o outro. E que talvez nunca conseguiriam ter uma identidade para chamar de sua, tão misturados estão à lama da bela Cidade do Salvador.
Filme: Cidade Baixa
Direção: Sergio Machado
Ano: 2005
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 9/10