Apesar da tristeza que frequentemente permeia a existência, uma ideia se impõe como uma verdade inegável quando se trata de vida ou morte: diante do menor sinal de ameaça, a maioria de nós opta pela vida, mesmo com a presença constante da morte, que nos observa de maneira furtiva, independentemente de nossos esforços para evitá-la. Com a mesma sensibilidade poética presente nos relatos de Stephen King, o diretor John Lee Hancock explora as obsessões de um dos grandes mestres do terror, destacando um aspecto nem sempre evidenciado nas obras de King.
“O Telefone do Sr. Harrigan” mantém o mistério característico da escrita de King, mas também trilha um caminho igualmente sombrio, resultando em um filme que supera em inquietação muitas das adaptações anteriores de suas histórias. Hancock adapta o conto homônimo de King, parte da coletânea “If It Bleeds” (2020), que inclui ainda “Rato”, “Se Sangra”, e “A Vida de Chuck”. A narrativa acompanha a vida de um garoto, Craig, de oito ou nove anos, que vive em um mundo progressivamente mais hostil. Após perder a mãe para o câncer em 2003, Craig e seu pai, interpretado por Joe Tippett, sentem-se ainda mais isolados em uma pequena cidade no Maine, terra natal do escritor.
A frequência à igreja local é mais um passatempo do que um ato de fé, momento em que são notados por Harrigan, o bilionário misantropo vivido por Donald Sutherland. A estrutura narrativa e o roteiro de Hancock mostram que Harrigan, cuja fortuna vem de anos de sucesso no mercado financeiro, escolhe passar seus últimos anos em um lugar onde ninguém mais precisaria dele. No entanto, essa verdade não é tão absoluta quanto ele e Craig esperavam. Harrigan também frequenta os cultos pela mesma razão que Craig e seu pai, que se mostra apático mesmo após a perda da esposa. Contudo, Harrigan vê em Craig uma determinação que marcou sua própria vida desde cedo.
Com a visão comprometida pela idade, Harrigan oferece a Craig cinco dólares por hora para que ele leia para ele em sua mansão. Assim, as terças-feiras se tornam o melhor dia da semana para ambos; Harrigan redescobre a literatura universal e Craig acessa um mundo que nunca imaginara. Hancock aborda o desenvolvimento da trama com sutileza. Alguns anos se passam, e Craig, agora interpretado por Jaeden Martell, mantém seu papel de leitor para o velho magnata, reforçando as inquietações apresentadas por O’Brien no início. A relação entre Harrigan e Craig torna-se mais próxima, semelhante à de avô e neto, embora não haja cenas explícitas de emoção entre os dois. Harrigan tem o hábito de presentear seus poucos amigos com bilhetes de loteria, e finalmente Craig é premiado.
Craig ganha três mil dólares e usa parte do dinheiro para comprar um celular de última geração para Harrigan, que já havia recebido um aparelho meses antes do pai, um gesto que revela a negligência silenciosa deste em relação ao filho. Harrigan, inicialmente hesitante, aceita o presente, possivelmente encantado pela possibilidade de acompanhar os mercados financeiros em tempo real, uma vantagem que apenas os muito ricos tinham em sua juventude. Neste ponto, King e Hancock fazem comentários perspicazes sobre o jornalismo na era da informação instantânea, que nem sempre esclarece. A história toma um novo rumo com a mudança na relação entre Craig e Harrigan, que se torna menos próxima, mas permanece estável, com Harrigan ajudando Craig de maneiras inesperadas sempre que necessário.
Os fãs mais puristas das obras de King e das adaptações para o cinema podem estranhar “O Telefone do Sr. Harrigan”. Distante de outras produções do gênero, como “1922” (2017) de Zak Hilditch, esta pode ser a adaptação mais peculiar de um escritor notoriamente complexo, algo que Hancock captura com maestria. Esse é o segredo por trás de todo o enigma deste filme.
Filme: O Telefone do Sr. Harrigan
Direção: John Lee Hancock
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Terror
Nota: 8/10