Trouxa eu sempre fui e não me emendo. Aprendi a ser enganado desde novinho. A primeira vez que sucedeu eu contava míseros três ou quatro anos. Era do tamanho do cachorro lá de casa, só que menos esperto. Fora levado pelos meus pais ao aniversário de outra criança. A dona da casa, uma mulher enorme com saia plissada, bochechas rosadas e cheiro de bolo formigueiro, distribuiu para a criançada um kit com guloseimas, uma bexiga, uma língua-de-sogra e um apito. O pequeno tesouro, democraticamente dividido, foi comemorado com gritaria e com alvoroço pela pirralhada.
A partir de então, supõe-se que o aniversário tenha ficado mais insuportável do que nunca para os adultos, porque todo mundo abaixo de cinco palmos de altura assoprava o danado do apito. Mesmo surda, a bisa da aniversariante, que sofria de velhice e de labirintite, vomitou de desgosto, teve síncope e foi guardada pelos responsáveis nas dependências da empregada. Uma menininha com aroma de chiclete tutti-frutti aproximou-se de mim e perguntou se podíamos trocar de apito, pois, aquele que ela tinha ganhado não lhe agradava na cor, preferia cor-de-rosa, sabe como é. Eu não sabia, mas, pensei que não haveria mal algum em trocar de apito com ela, o que fiz sem titubear.
A guria sumiu mais rápido do que o sopro de uma vela na Hora do Parabéns. Fui me juntar aos outros meninos e assoprei o apito, mas, ele não emitiu som algum. Recorri ao adjutório de um moleque mais velho que examinou o brinquedo e diagnosticou um defeito de fábrica. Faltava aquela minúscula esfera plástica que ficava solta na parte interna e que vibrava movida pelo ar, reproduzindo um agudo e peculiar ruído que deixava os adultos indóceis. Era um apito que não apitava, por mais que se assoprasse nele. Eu caíra na lábia de uma doce estelionatária mirim.
A segunda vez aconteceu quando um pivete que rondava pelo bairro em busca de arte pediu para segurar o periquito Valverde que estava pousado no meu ombro beliscando o lóbulo molinho da minha orelha, uma delícia boa de se sentir. Por que não dividir com alguém a satisfação de segurar nas mãos uma criaturinha que voava, pensei. Eu disse você pode pegar, mas, toma cuidado porque ele é muito frágil. O meninote que tinha o dobro da minha idade catou o periquito Valverde e vazou correndo ladeira abaixo, mais rápido do que as lágrimas de separação no meu rosto, deixando para trás aquele sentimento inédito de que o mundo era tão bom quanto a gente achava que ele era. Passei duas noites sem dormir, mas, finalmente, acabei me cansando porque esquecer a gente nunca esquece, nem quando fica adulto. De qualquer forma, sempre aparecia alguém de alma boa com uma caixa de papelão furada nas laterais, repleta de periquitos para repor o estoque de divertimento da vizinhança.
O tempo escapou entre os dedos, tão veloz quanto o algoz que dobrara a esquina com o Valverde aprisionado nas mãos. Eu me transformara num homem adulto, um veterano em matéria de ser ludibriado por terceiros. Então, passei a desconfiar das pessoas, inclusive, das boas pessoas. Uma lástima, eu sei. Entretanto, trouxa que é trouxa sempre sofre de recaídas. Em certa medida, continuei a botar fé nalguns gatos pingados. Até ser enganado de novo, como se nunca tivesse crescido.