As crianças possuem uma liberdade invejável — fazem o que desejam, muitas vezes extrapolando seus caprichos e atribuindo uma importância desmedida a suas vivências e fantasias, que existem apenas em suas próprias mentes. Apesar disso, continuam a ser amadas, e é essa capacidade de criar histórias ricas em imaginação que as torna tão especiais. Se uma criança afirmasse que pode voar, como reagiríamos sem ferir sua delicada sensibilidade? Em “O Homem Sem Gravidade” (2019), acompanhamos Oscar, um menino que não voa, mas flutua, uma habilidade que manifestou desde o nascimento. Essa peculiaridade, porém, traz consigo desafios sociais significativos, como sabem sua mãe e avó, que o protegem da curiosidade e da malícia do mundo exterior. Toda criança é um tesouro, embora muitos adultos esqueçam disso.
O diretor italiano Marco Bonfanti, juntamente com o roteirista Giulio Carrieri, desenvolve a partir dessa premissa uma narrativa que busca explorar o que realmente importa na vida, destacando a singularidade de cada indivíduo e sua plenitude de direitos, deveres, necessidades, aspirações e sonhos. A trama nos convida a refletir sobre a extraordinária capacidade das crianças de querer algo de todo coração, incluindo a habilidade de voar. Oscar, que é interpretado por Elio Germano na fase adulta e por Pietro Pescara na infância, lembra-nos do conceito do Übermensch de Nietzsche, alguém que supera os obstáculos da vida e os observa de uma perspectiva elevada, percebendo-os como insignificantes em comparação à grandiosidade da própria vida. Não é coincidência que o enredo faça referências ao Super-homem, símbolo da força sobre-humana, mas também com suas próprias fraquezas. Oscar, por sua vez, prefere o Batman, o vigilante incompreendido que age nas sombras para proteger a cidade, um herói mais relacionado à sua condição de ser diferente.
Sabendo que a peculiaridade de Oscar poderia levá-lo a ser rejeitado pela comunidade, sua mãe Natalia, interpretada por Michela Cescon, e sua avó Alina, vivida por Elena Cotta, mantêm-no protegido do mundo exterior. Apenas Agata, uma criança com desejos e medos semelhantes, consegue ultrapassar essa barreira protetora. Dividida entre Jennifer Brokshi e Silvia D’Amico, Agata torna-se a ponte entre Oscar e o mundo, simbolizando aquele primeiro amor da infância que todos um dia experienciaram e que inevitavelmente chega ao fim.
Ao crescer, Oscar enfrenta dificuldades por não ser como os outros e, paradoxalmente, por ser melhor em certos aspectos. A mochila rosa que usava na infância, que o ajudava a manter-se no chão, continua a acompanhá-lo na vida adulta, gerando estranheza e piedade nos demais, que suspeitam de alguma deficiência intelectual. Apesar de sua inteligência privilegiada, moldada por sua condição especial, Oscar percebe que seu dom mais o atrapalha do que ajuda. Flutuar acima do solo não lhe traz vantagens significativas e não o capacita a impactar a vida de outros. Aceitando essa realidade, Oscar acaba participando de um programa de televisão, sendo exibido como uma curiosidade, reminiscente dos circos de antigamente.
Bonfanti preserva a essência mágica de sua história, mas retrocede à infância de Oscar, onde reside o cerne da narrativa. A mensagem final, porém, deixa uma sensação ambígua. Oscar não é compreendido como um homem verdadeiramente extraordinário, e o filme sugere que há algo de monstruoso em ser diferente ou simplesmente em não se conformar com o padrão. “O Homem Sem Gravidade” se revela, assim, uma bela história com um desfecho melancólico.
Filme: O Homem Sem Gravidade
Direção: Marco Bonfanti
Ano: 2019
Gêneros: Fantasia/Drama
Nota: 9/10