“O Poço” capturou todos os olhares no TIFF, o Festival Internacional de Cinema de Toronto, no Canadá, em setembro de 2019, ano em que foi lançado — embora a consagração do filme de Galder Gaztelu-Urrutia tenha vindo por meio de um tal Midnight Audience Award, o Prêmio da Audiência da Meia-Noite, rótulo cheio de ocultas idiossincrasias (mas nem tanto).
O mau juízo dos organizadores do TIFF, induzidos ao erro pela perversa lógica do mercado de querer enquadrar tudo em classificações tão rígidas quanto equivocadas, parece ter ignorado alguma coisa muito elementar, básica a ponto de apenas os leigos insones e malditos terem sido capazes de absorver — o que vira e mexe ocorre no próprio Oscar, aliás.
Em 333 pavimentos de um prédio abandonado em Franca, cidade no nordeste de São Paulo, uma prisão vertical abriga uma fauna tão diversa que junta no mesmo ambiente estelionatários, assassinos e estupradores, mas também gente como Goreng, que só precisa de um pouco de sossego para ler um livro e de condições que o inspirem a largar o cigarro.
O personagem, interpretado com dedicação absoluta e irrestrita por Ivan Massagué, não tarda a perceber que o edifício é cortado por uma imensa cavidade que abriga uma estrutura bastante larga, dentro da qual se sobe e desce uma mesa posta com o banquete que alimenta os prisioneiros.
Os cativos do térreo são os únicos que usufruem do que é servido da forma como os pratos saem da cozinha, em tudo parecida à de um restaurante indicado pelo Guia Michelin. Depois, os detentos que se virem com as sobras deixadas pelos comensais do andar inferior, e assim continua, até que o mecanismo e a comida subam até o último pavimento. Revirada, coberta de dejetos, asquerosa.
No roteiro de David Desola e Pedro Rivero, Goreng começa a história no 48° nível, junto com Trimagasi, o companheiro com quem divide a cela vivido por Zorion Eguileor, que não se cansa de podar-lhe qualquer anseio por revoltas ou uma melhoria súbita e espontânea nas condições do Poço, uma vez que o objetivo da experiência é fazer com que todos passem pelos 333 andares e conheçam o maior número possível de parceiros.
Ou seja, é melhor se acostumar e não criar laços nem expectativas.Mesmo que a possibilidade de se movimentar e assim melhorar seu status seja a razão de ser do experimento — uma metáfora evidente sobre a mobilidade social, que neste caso, implica descer, não subir —, o personagem de Massagué não abandona de todo a ideia de fazer alguma coisa para que os encarcerados parem de se nutrir de despojos.
A fotografia de Jon D. Dominguez, detalhe técnico poderoso que conduz o olhar do espectador para onde o filme deve seguir, mergulha a tela num filtro vermelho-sangue, fazendo recrudescer a tensão e esticando com energia o fio dramático da trama a partir da segunda metade da história. A narrativa por seu turno é imersa no rio de sangue margeado por suspense e terror vívidos, mais insinuantes à medida que o desfecho se vai anunciando.
Longe de requentar ideias de produções congêneres, o que Gaztelu-Urrutia faz em “O Poço”, na Netflix, é burilar sua obra-prima como um hábil carpinteiro, visando a chegar a uma alegoria inteligente e ousada, que tanto pode se referir à sociedade de um país qualquer da América Latina, desigual e injusto, como dizer muito do próprio gênero humano. É da natureza mesma do homem subjugar seu próximo e tirar dele todas as vantagens que encontre. E se deleitar com um naco de sua carne.
Filme: O Poço
Direção: Galter Gaztelu-Urrutia
Ano: 2019
Gêneros: Thriller/Terror
Nota: 10