Inundado por pensamentos capciosos, aguardo o resgate dos helicópteros do sono. Eu sou aquele cavalo caramelo sobre o telhado de uma casa inundada, de olhar taciturno, à espera de um caminho seco e seguro onde trotar. O pampa virou mar — penso, macambúzio, com ares de sertão só que não. Quando estiar, quando a água das chuvas finalmente escoar de dentro de mim pelos canos da história, o coração vai galopar diferente. A lama será apenas outra tétrica pegada no corolário das incongruências humanas.
Longe do caos, a milhares de milhas dessa ilha de destruição liquefeita, no alto de uma montanha de problemas, um lama que jamais se casou, muito menos, cavalgou numa planície da América do Sul, de tanto mancomunar com as crendices e com o imaginário, por pouco não enlouquece. O ser humano é uma equação insolúvel — conclui de forma enfática, cansado da vida de solteiro, ao ser confrontado pela escassez de bons motivos para crer num mundo mais edificante. A resposta está posta, mas, os olhos não veem. Que porca miséria viver durante tantos anos para sucumbir inundado pelas trombas da ignorância — ele se martiriza, ao comparar o bem e o mal, como se não fosse um sábio.
O ancião continua a lucubrar: solidariedade e maldade são mais do que dois vocábulos que rimam entre si. São erros substantivos, paradoxais. Assim como resgatar os flagelados de uma formidável inundação, enquanto outros homens passam a noite em claro, nos recantos bélicos do planeta, projetando as rotas letais de mísseis teleguiados que vão chover mais do que canivete na horta de uma vila povoada por civis inocentes. Assim como salvar uma sorumbática cavalgadura do afogamento iminente, resgatando-o do alto do telhado de uma casa submersa até o pescoço das janelas, ao passo em que homens torturam outros homens, amassam mulheres e assassinam crianças.
De volta para mim, um quadrúpede ilhado na comunheira: se a gente pensa direito nos disparates de ser ou não ser, mesmo não tendo lido uma vírgula de Shakespeare, mesmo não sendo um lama, um cavalo ou um maldito estrategista de guerra, fica-se atolado até os chifres nos barros da loucura. Só mesmo pastando, rezando, cavando ou relevando as dicotomias da humanidade para manter uma sanidade mental mínima e levar a vida na flauta, flutuando como uma pedra, tropeçando pelo caminho com as alpercatas de um vate míope ferruginoso que julgava ter o coração confeccionado com minério de ferro.
Pensar e agir feito um poeta: eis o cisma possível. Viver como um bardo que peleja e que ferve ao rimar palavras que não têm cura, no subestimado ofício de enxergar a vida com os olhos tristes e miseráveis de um cavalo combalido que prestou relevantes serviços para a comunidade e que, agora, frente a tamanho grau de desconsolo, se declara, finalmente, apto para o sacrifício da degola num frigorífico exclusivo para equinos.