Cada expressão artística parte do princípio de que em algum momento ela já se manifestou anteriormente. As pinturas, inclusive as abstratas, são reflexos das percepções internas do artista, moldadas por experiências, seja de forma consciente ou inconsciente; os filmes requerem um mínimo de fundamentação na realidade para se sustentarem, mesmo quando flertam com o fantástico; de forma semelhante, a literatura encapsula narrativas ficcionais em cenários palpáveis, elevando o espírito humano enquanto busca ancorar-se nos fatos da vida, tanto na perspectiva do leitor quanto na do escritor. A essência da arte é um enigma: mesmo os mais dotados não compreendem completamente o segredo da criação magistral, enquanto pessoas com talento questionável muitas vezes capturam e transmitem com maestria a essência da vida ao seu redor. A arte não existe para corrigir desigualdades, e sim para expressar a complexidade da existência.
Baseado no romance de Javier Cercas, o filme “O Autor”, dirigido por Manuel Martín Cuenca e lançado em 2017, explora as adversidades enfrentadas por escritores, seja iniciantes ou experientes, que surgem quase diariamente dependendo da frequência com que escrevem. No filme, Álvaro, interpretado por Javier Gutierrez — que recebeu o Goya de Melhor Ator por este papel — é um notário na casa dos quarenta que descobre uma habilidade incrível para manipular pessoas. Este insight o leva a abandonar seu trabalho rotineiro.
Álvaro não consegue dominar sua própria vida, o que é evidenciado por atrasos frequentes e baixo desempenho no trabalho, o que faz com que seu superior, Alfonso, interpretado por Alberto González, o encoraje a tirar uma licença. Ele sai por dois meses e ao retornar descobre que foi demitido, sem direito a compensações, já que a decisão de sair foi sua. Antes disso, um confronto com sua esposa Amanda, interpretada por Maria Leon, uma escritora de sucessos populares, precipita sua mudança para um novo apartamento. Este evento se torna o catalisador para Álvaro buscar a vida que sempre desejou.
Em sua nova morada, cuidada por Lola, a zeladora interpretada por Adelfa Calvo — que também ganhou um Goya de Melhor Atriz Coadjuvante —, a complexidade de Álvaro começa a emergir. Sua nova obsessão por escrever é tão intensa que negligencia até mesmo a mobília do apartamento. A abordagem de Cuenca ao lidar com o turbilhão de conflitos de Álvaro tem um tom de humor sombrio e peculiar, especialmente quando ele interage com Lola. A tensão aumenta com a chegada de Juan, o professor de escrita criativa vivido por Antonio de la Torre, cuja influência é crucial na determinação de Álvaro em se dedicar a escrever sua novela, um processo observado com humor e ceticismo.
Enquanto isso, Álvaro observa seus vizinhos, Irene e Enrique, imigrantes mexicanos interpretados por Adriana Paz e Tenoch Huerta, que estão prestes a se mudar devido a problemas financeiros. As interações de Álvaro com seus vizinhos e sua crescente intrusão na vida alheia, pensando que não causa dano, culminam em uma série de eventos desastrosos, levando a um crime que coloca todos os moradores como suspeitos, e ele acaba sendo preso, em uma reviravolta tardia, porém inventiva, que remete ao filme “Quem com Ferro Fere” de Paco Plaza.
“O Autor” aproveita cada elemento disponível para desenvolver uma trama repleta de caráter e complexidade, navegando pelo desafio de equilibrar uma quantidade substancial de personagens e manter o público engajado. A arte da escrita, assim como qualquer empreendimento criativo, pode ser tanto desafiadora quanto gratificante, uma verdade que alterna entre a necessidade de paciência infinita e a ausência da mesma.
Filme: O Autor
Direção: Manuel Martín Cuenca
Ano: 2017
Gênero: Comédia/Drama/Suspense
Nota: 9/10