Estimado sr. Mann,
A primeira vez que soube de sua existência foi na leitura de uma entrevista de um cantor de rock, um certo Renato Russo. O senhor não teria como conhecê-lo — nem ele, nem o rock. Li a tal entrevista num banco da Praça Cagancha, em Montevidéu. Manhã fria de inverno uruguaio, céu cinzento como sempre, de um dia qualquer do ano de 1990. Havia uma banca de revistas e jornais (local hoje em extinção) que vendia publicações brasileiras, para gente perdida ali como eu.
(Ao voltar para o Brasil, dois anos depois, fui a um sebo para comprar seus livros, os primeiros da minha biblioteca pessoal.)
Na entrevista, aparecia Renato de bigode, relatando os meses que passou em Nova York. Ele comprou uma televisão, livros, e ficou por lá para ver a movimentação. Falou sobre militância gay em tempos de Aids — que o mataria alguns poucos anos depois. Ele perdeu um show dos escoceses do Jesus & the Mary Chain, de propósito. Difícil acreditar porque no disco de 1991 do grupo Legião Urbana (chamado “V”) Renato apareceu na capa interna com a camiseta da banda dos irmãos Jim e Willian Reid.
Lá, pelas tantas, ele citou um livro do senhor, “A Montanha Mágica”, de 1924 e que em novembro próximo completa cem anos de idade. Nunca tinha ouvido falar da obra. Renato contando os amores homoeróticos, as doenças, a vida nova-iorquina. Tampouco eu sabia que a família Mann tinha um ramo brasileiro, de Paraty, no Rio de Janeiro. Sua mãe, senhor Mann, quem diria, nascera no Brasil em 1851, filha de um alemão perdido nos trópicos e de uma descendente de portugueses.
Julia, ou Dodô, acabou se mudando ainda criança para a Alemanha. Depois, soube por livros biográficos que o senhor adorava brincar com seu exotismo, uma morenice na terra fria de pessoas aloiradas. A Itália, a vida mediterrânea, tinha um espírito dionísico que o atraía. Será que Renato conhecia o livro “Morte em Veneza”, no qual o senhor mistura a tentação sexual, o instinto da morte, a doença que impregna o lugar? Acho que saberia sim — ou tinha intuição.
E não é que Renato deu justamente o nome de “Montanha Mágica” a uma das canções do disco “V” (1991), do grupo Legião Urbana. Falou de papoulas da Índia: “Chega, vou mudar a minha vida/Deixa o copo encher até a borda/Que eu quero um dia de sol/Num copo d’água”. Ele acabaria internado em abril de 1993 numa clínica para desintoxicação de álcool e drogas — assim como personagens do seu livro que ficam um tempo no sanatório internacional Berghof, na cidade Davos, na Suíça.
Em seu livro, senhor Mann, o personagem singelo Hans Castorp vai parar naquele sanatório para tuberculosos onde está o primo Joachim. Porém ele não sabe que está doente e fica ali por sete anos, na véspera do trauma da Guerra de 1914. Perde a noção do tempo que se passa. Veja se entendi bem o seu livro, senhor Mann. Lá no sanatório, ele encontra duas figuras do tempo europeu que o fascinam: o humanista Ludovico Settembrini e o sombrio Leo Naphta. Alegorias das disputas e brigas do século 20?
A história de Castorp, a bem da verdade sr. Mann, assusta um poucos os leitores de hoje. Há muita referência à cultura alemã, com seus contos de fadas e obras poderosas como a de Goethe. O livro é imenso. Por sorte nossa, a dos brasileiros, uma turma de estudiosos se dedica a investigar seu trabalho. Não deixam morrer o livro. Um desses leitores iluminados teve a paciência de ler os escritos de sua esposa, Katia, e desenhou fez a gênese do romance. Não sei se o senhor chegou a ler as memórias dela.
Ela conta que, em 1912, teve uma infecção pulmonar: “Era um catarro na ponta do pulmão, uma tuberculose descuidada, fechada, mas que me forçou várias vezes à cura no alto das montanhas”. Os médicos recomendaram a ela uma internação, o que ocorreu entre os meses de março a setembro daquele ano no “Waldsanatorium”, em Davos. “Depois, no ano seguinte, por vários meses [fui] para Meran e Arosa e, por último, para Clavadel perto de Davos por mais seis semanas”, acrescentou.
Pelo que Katia contou, o problema de saúde não era grave, mas ainda assim o senhor a acompanhou. Disse ela: “Meu marido me visitou em Davos no verão de 1912 e ficou tão impressionado com todo o ambiente e também com o que lhe contei, que logo pensou em escrever uma novela sobre Davos, quase como um epílogo grotesco ou contraste para a ‘Morte em Veneza’. Essa novela tornou-se então a ‘Montanha Mágica’”. Uma fauna humana, com certeza, em tempos muito loucos.
Fico imaginando o que passou pela sua cabeça, sr. Mann, naqueles anos todos. Aquela gente enferma do corpo e da alma, no alto de uma montanha gelada, a nata dos europeus ricos. Não é por acaso que aquilo deve tê-lo assustado. Foram 12 anos até a publicação final do livro. Hoje, me desculpe pela indiscrição dos meus contemporâneos, podemos ler suas cartas e seus diários — os mesmos que o senhor pediu para vir a público apenas 20 anos após sua morte em 1955.
Numa carta de 1915, o senhor contou detalhes do que estava pensando para o que viria a ser o livro: “O espírito do conjunto é humorístico-niilista, e a tendência oscila antes em direção ao lado da simpatia com a morte. Chama-se A montanha mágica, e tem algo do ‘Zwerg Nase’ [conhecido conto de fadas], que sente a passagem de sete anos como se fossem dias. Para a conclusão, o desenlace, não vejo outra possibilidade além daquela da deflagração da Guerra. Como narrador, não se pode ignorar esta realidade, e creio ter direito a ela, visto que a pressentia em todas as minhas concepções”.
Os diários impressionam pelo tanto que o senhor deixou de indicações. Por exemplo, um trecho de abril de 1919: “Retomei ‘A Montanha Mágica’ após 4 anos de interrupção. Quer dizer, comecei o 1º capítulo novamente com uma nova introdução, com a intenção de estendê-lo no que diz respeito ao avô Castorp, sob o título de ‘Pia batismal’ […]. A nova introdução toca o tema do tempo pela primeira vez”. A interrupção de quatro anos foi para escrever os ensaios do livro “Considerações de um Apolítico” (1918), que deixou muita gente de boca aberta.
Em julho de 1924, veio uma boa nova nos diários, afinal o livro estava perto de ser concluído: “É um romance grande, que espero concluir nas próximas semanas. Um monstro de dois espessos volumes […] É um empreendimento especificamente alemão e deveras curioso, uma espécie de modernização do romance de formação e educação e também novamente algo como uma paródia do mesmo”. Um empreendimento que faz a cabeça de gerações de leitores e leitoras.
Olha só o que o poeta Octavio Paz, também um Nobel de Literatura como o senhor, escreveu: “Um dos autores que exerceu maior fascinação sobre nós foi André Malraux, em cujas novelas víamos unidas a modernidade estética ao radicalismo político. Um sentimento semelhante nos inspirou ‘A montanha Mágica’, o romance de Thomas Mann; muitas discussões eram ingênuas paródias dos diálogos entre o liberal idealista Settembrini e Naphta, o jesuíta comunista”.
A disputa que Settembrini e Naphta fazem pela alma de Castorp incendiou a imaginação de jovens pelo mundo afora. Isso aconteceu até no Brasil, sr. Mann. Se lembra de um jornalista brasileiro que o entrevistou em Berlim em 1930? Pois então, ele voltou para cá e publicou o livro “Raízes do Brasil” em 1936. Ele se chamava Sérgio Buarque de Holanda e, segundo um de seus bons leitores de hoje, o romance “A Montanha Mágica” foi decisivo para a escrita nova interpretação da sociedade brasileira.
Conta o leitor meticuloso: “Em Raízes do Brasil, o liberalismo progressista e o conservadorismo tradicionalista são compreendidos, antes de mais nada, como alternativas pedagógicas, estando o debate propriamente político subordinado a esse filtro, configurado à maneira distanciada e irônica do narrador da longa temporada alpina de Hans Castorp — personagem que, em sua incapacidade de compreender o significado das doutrinas que lhe oferecem os pedagogos rivais, Naphta e Settembrini, se assemelha em mais de um aspecto ao retrato que Sérgio Buarque traça da intelectualidade brasileira em ‘Raízes do Brasil’”.
Muita gente fica imaginando como teria sido a vinda sua para o Brasil na Segunda Guerra Mundial. Ao invés dos EUA, onde escreveu o romance “Doutor Fausto”, o senhor viveria no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Conheceria exilados europeus, como o alemão Anatol Rosenfeld, que escreveu para jornais brasileiros sobre seus romances, novelas e até sua coleção de cartas. Quem sabe haveria até uma roda de conversa com João Guimarães Rosa, que imaginou um pacto fáustico no sertão brasileiro.
Sabe o que é o sertão? É onde o diabo fica no meio do redemoinho, tem jagunço, deus e o demônio. Esse pessoal, gente boa, era tudo filho de Settembrinis, que entendera o seu recado: sujeitos de nome João, Anatol, Otto, Antonio, Roberto, Bento, Paulo. Mas alguns deles também tinham simpatia por Naphta — afinal, nos anos 1960 o Brasil teve um monte de seguidores de Lukács, que o inspirou na elaboração do seu personagem fascinante. Sonhavam com a energia de uma revolução.
Mas sinto dizer, senhor Mann, que todos os Settembrinis do mundo sumiram do mapa. Não tem mais. Sobraram Naphtas, gente da contrarrevolução, tradicionalistas militantes, conservadores radicais. Até hoje homens em tempos sombrios, como diria nossa amiga Hannah. Em meio a homens rudes, tivemos Renato, o cantor de rock, que foi parar num sanatório para se curar da doença das drogas (que ilusão!). Ele sempre divulgava o seu livro, teve lá uma “montanha mágica” pessoal e guardou histórias num diário que virou livro anos atrás (“Só Por Hoje e Para Sempre”).
O mercado de hoje adora as descidas aos infernos de gente famosa. O senhor não conheceu a internet, a inteligência artificial, o mundo das fofocas. Acho que o Renato iria gostar muito das memórias da Patti Smith (“Só Garotos”), era a cara dele. Ela é uma humanista (uma Settembrini) que nos inspira, nos dá esperança. Sem mais o que relatar, me despeço. Volto daqui uns anos para conversar mais. Aliás, João Silvério Trevisan manda lembranças. Ele escreveu um romance em 1994, “Ana em Veneza”, que é muito bom. Imaginou as histórias de sua mãe Julia, indo de Paraty para Lübeck.
Atenciosamente, EV.
Brasília, maio de 2024